sábado, 16 de outubro de 2010

Pecados eleitorais: entre fogueira e abjuração, por Emerson Gabardo

É vergonhosa a situação a que chegou a disputa eleitoral no Brasil. Aqueles que falavam mal do moralismo conservador norte-americano queimaram a língua. A intolerância não só bateu à nossa porta, como entrou. Estamos à beira de um retrocesso social que deve estar deixando orgulhosos os eficientes herdeiros da inquisição.
Abjuração, segundo o vernáculo, vem de “abjurar”, que por sua vez é o ato de “renunciar à opinião”; abandonar solenemente uma convicção ou crença. A Igreja, durante parte considerável de sua existência, consagrou a prática ao exigir dos propalados “hereges” (todos aqueles que defendiam posições contrárias à oficial) que voltassem atrás no que tinham dito. Tempos obscuros estes em que não se tinha liberdade de pensamento e o irracionalismo dominava a condição humana. Galileu Galilei talvez tenha sido um dos mais famosos hereges que foram obrigados a abjurar para não morrer, renunciando à sua tese de que seria a Terra que girava em torno do Sol e não o contrário, como defendia a Igreja Medieval.
Assim disse o cientista em sua carta de abjuração: “... juro que sempre acreditei e, com o auxílio de Deus, acreditarei no futuro, em tudo a que a Santa Igreja Católica e Apostólica de Roma sustenta, ensina e pratica. Mas como fui aconselhado, por este Ofício, a abandonar totalmente a falsa opinião que sustenta que o Sol é o centro do mundo e que é imóvel, e proibido de sustentar, defender ou ensinar a falsa doutrina de qualquer modo; (...) desejo retirar esta suspeição da mente de vossas Eminências e de qualquer Católico Cristão, que com razão era feita a meu respeito, e por isso, de coração e com verdadeira fé, abjuro, amaldiçoo e detesto os ditos erros e heresias e de uma maneira geral todo erro ou conceito contrário à dita Santa Igreja.”
Este segundo turno eleitoral parece ter como mote um caso de eloqüente abjuração. O retorno de uma mentalidade dogmatista e fartamente irracional não como um detalhe, mas como centro dos debates, é um fato preocupante. No começo, confesso que não dei muita importância ao fenômeno. Mas a coisa tomou proporções inimagináveis para um auspicioso século XXI. De todo modo, estou convicto que não se trata apenas de uma questão de religião interferindo no espaço político. Até porque isso não seria nada incomum ou indesejável à política. Qualquer sistema que se pretenda republicano tem que conviver com todo tipo de influência nas escolhas democráticas. E cada qual tem sua preferência econômica, cultural, ética, ou até mesmo “estética”, para escolher seu representante. Por exemplo, no primeiro turno ouvi uma colega dizer que votaria na Marina porque certa feita encontrou-a no aeroporto e “sentiu de perto seu magnetismo”. Como diria Paulo Francis, waaall...
De fato, o mais importante fator de decisão política é o processo de identificação: na verdade nós votamos, em geral, por duas espécies de razões: por paixão (quando nós temos afinidade pessoal com um candidato) ou por interesse (quando achamos que eleito tal candidato ele vai nos trazer maior vantagem). Posições altruístas e, portanto, preocupadas com “o outro”, ou ao menos com “os demais”, dificilmente condicionam o processo eleitoral. A não ser quando nos propiciam um “engajamento coletivo”; quando nos sentimos unidos às tais “cruzadas contra o mal” que aparentemente jamais deixarão de existir.
O jornalista Decca Aitkenhead bem apontou que na sociedade contemporânea existem situações que nos oferecem uma rara oportunidade de legitimamente odiar alguém; portanto, um voto “contra o aborto” passa a definir você como decente; contra a união homoafetiva, faz você conquistar seu pedaço no paraíso; você torna-se um sujeito melhor e mais reconhecido pela sua comunidade majoritária. Neste ambiente, questões de fundo relativas a sérios e complexos problemas do quotidiano deixam de ser debatidas; tornam-se um dogma. E como todo dogma, ele não está sujeito ao debate político ou à especulação racional. Ele apenas é digno de fé. E não ter fé pode custar uma eleição. Veja-se o conhecido caso do nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que questionado sobre acreditar ou não em Deus embananou-se na resposta e perdeu a eleição para o governo de São Paulo. Não é sem razão que, anos depois, a FHC foi imputada sua mais célebre frase: “esqueçam o que escrevi” – e ganhou a eleição.
                        Nada mais comum do que candidatos mudarem de opinião: antes, durante e após as eleições. Assim como nas novelas, o final feliz depende do gosto do público. Não deixa de ser engraçado ver Serra defendendo a estatização e a implantação de políticas assistenciais de distribuição de renda; assim como é surreal ver Dilma em Aparecida (ao lado do Gabriel Chalita!). E quem de nós pode condenar este “pragmatismo” eleitoral? Afinal, quem vota é o povo. E candidato sincero que ganha eleição, pelo jeito, só o Tiririca.
Mesmo reconhecendo toda esta situação (e sendo bastante compreensivo com ela), o complicado é aceitar que um momento tão importante da democracia brasileira pode não vir a ser decidido pela persuasão racional ou pelo efetivo debate dos mais importantes temas da gestão pública do país. Ainda que o aborto ou a união homoafetiva sejam temas relevantes, tanto sob o aspecto dos direitos fundamentais, quanto do interesse público, por certo, não deveriam ter tal expressão como critério decisório (não são, nem de longe, assuntos dos mais importantes para a nossa sociedade). Principalmente nos termos em que a questão vem sendo “colocada”. Há crianças que estão saindo da missa aterrorizadas com a vilã “matadora de bebês”. E nós já vimos este filme escatológico em oportunidades eleitorais anteriores...
Lançam-se afirmações com pretensão de certeza, com o objetivo de atingir não a inteligência das pessoas, mas a sua sensibilidade. E aquele que for mais eficiente na aplicação midiática desta estratégia tem grandes chances de se eleger. Por certo, isso não contribui em nada para o processo de amadurecimento institucional que o Brasil precisa. Deve haver bons motivos de ordem racional para votar no Serra (ou não); e semelhantes bons motivos para votar em Dilma (ou não). Todavia, temos que partir da dúvida e não da certeza. Mais que isso, temos que fugir do personalismo e debater os diferentes (e são diferentes sim) projetos de desenvolvimento do país, notadamente de acordo com a história de cada grupo político – questionando o que eles fizeram (ou não) para a concretização do objetivo constitucional de estabelecimento de uma sociedade justa, livre e solidária.
Como ensina o professor Luis Carlos Menezes “a dúvida como direito é condição de liberdade”. Ou seja, nós temos que nos defender dos dogmas, pois no plano da sociedade, o dogma gera totalitarismo; no plano das convicções, o dogma gera sectarismo; no plano do conhecimento, o dogma gera obscurantismo; e no plano pessoal (e moral), o dogma gera o preconceito. Seria ótimo se todos nós aprendêssemos esta lição de civilidade política antes de depositarmos nosso voto na urna. Inshalá!

EMERSON GABARDO é Advogado, Doutor em Direito do Estado, Professor de Direito Administrativo da Universidade Federal do Paraná e Coordenador Adjunto do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. (e.gab@uol.com.br)

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