quarta-feira, 23 de março de 2011

Direto do Plenário: STF decide que Lei da Ficha Limpa não vale para Eleições 2010

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Quarta-feira, 23 de março de 2011
Direto do Plenário: STF decide que Lei da Ficha Limpa não vale para Eleições 2010
Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de decidir que a Lei Complementar (LC) 135/2010, a chamada Lei da Ficha Limpa, não deve ser aplicada às eleições realizadas em 2010, por desrespeito ao artigo 16 da Constituição Federal, dispositivo que trata da anterioridade da lei eleitoral.
A decisão aconteceu no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 633703, que discutiu a constitucionalidade da chamada Lei Complementar 135/2010 e sua aplicação nas eleições de 2010. Por seis votos a cinco, os ministros deram provimento ao recurso de Leonídio Correa Bouças, candidato a deputado estadual em Minas Gerais que teve seu registro negado com base nessa lei.
No primeiro julgamento concluído em que a Corte analisou a lei, em outubro de 2010, no caso do candidato ao senado pelo Pará Jader Barbalho, o placar terminou com um empate de cinco votos contrários e cinco votos a favor da aplicação da Lei para 2010. O voto proferido pelo ministro Fux na tarde desta quarta-feira (23), contra a aplicação da norma para o pleito de 2010, definiu a questão.
Em seu voto, o ministro Luiz Fux disse entender que mesmo a melhor das leis não pode ser aplicada contra a Constituição. O intuito da moralidade é de todo louvável, mas a norma fere o artigo 16 da Constituição Federal, frisou o ministro em seu voto.
Em decisão preliminar, os ministros já haviam concordado que esta decisão – sobre a inaplicabilidade da lei para 2010 – tem repercussão geral, e portanto se aplica a todos os demais recursos que versam sobre essa lei.

domingo, 20 de março de 2011

Reforma política IV - a reeleição

Continuando com os posts de domingo sobre a reforma política, trago hoje a parte da pesquisa sobre reeleição:


No Brasil, o poder de reforma da Constituição atingiu o cerne do princípio constitucional da máxima igualdade entre os candidatos, ao acolher, em oposição à história política e constitucional do país, o instituto da reeleição para os cargos do Poder Executivo.  A irrelegibilidade refletia uma garantia republicana e era quase um dogma.  Constituía uma das escolhas constituintes fundamentais.
Paulo Peretti Torelly aponta que a vedação à reeleição consagra “objetivamente a isonomia entre os candidatos e as respectivas concepções políticas que representam” e que essa interdição é constitutiva da instituição republicana. Dispositivo expresso de todos os textos constitucionais, com exceção da Constituição de 1937, a proibição de um mandato sucessivo para os chefes do Poder Executivo expressa “um limite material presente na coerência do todo normativo da ordem constitucional assentada na idéia de isonomia”.
Sua adoção leva à quebra de uma lógica de tratamento igual, ao menos formalmente, dos candidatos ao pleito. A desigualdade se estabelece simplesmente a partir da dupla condição de candidato e chefe da Administração,  configurando uma “regra de privilégio”, um “Cavalo de Tróia”.  Paulo Bonavides afirma que o Brasil está em crise de legitimidade, uma crise constituinte, “desde a Emenda materialmente inconstitucional da reeleição do presidente da República”.  Igualmente crítico à adoção da reeleição, contrária a toda tradição, prudência e bom senso, manifesta-se Fábio Konder Comparato.
Essa não é a opinião de Vera Maria Nunes Michels, que vê na possibilidade de reeleição dos chefes do Poder Executivo “algo saudável numa democracia”, pois permite que os eleitores renovem o mandato de bons administradores. Afirma ainda a autora que a maior exposição do abuso de poder político propiciada pela reeleição demandará normas eficazes e maior conscientização dos eleitores. 
Para Aroldo Mota, analisando a possibilidade de reeleição, “[a] influência do poder público no resultado da eleição é muito pequena”. Além disso, afirma que ou se adota a reeleição ou se proíbe, não fazendo sentido exigir que o ocupante do cargo se afaste para a campanha.
Karl Loewenstein, ao se referir ao controle sobre o processo eleitoral em regimes autoritários, aponta a incorporação de vantagens na campanha eleitoral para os partidos governamentais como um método antidemocrático.  Mesmo que não se possa configurar o regime político brasileiro em 1997 como autoritário, parece inegável que a incorporação da possibilidade de reeleição para os chefes do Poder Executivo permite uma vantagem pouco democrática na disputa eleitoral.  E é inconstitucional.
Ademais, com a alteração apenas de um parágrafo da Constituição, sem a alteração dos demais dispositivos do artigo 14, o sistema constitucional restou incoerente e iníquo: permanece a necessidade de afastamento dos titulares do Poder Executivo para concorrer a outros cargos e a inelegibilidade por parentesco, mas o candidato à reeleição pode permanecer no cargo que novamente disputa.
O parágrafo 6º do artigo 14 da Constituição referia-se à necessidade de renúncia ao mandato pelos chefes do Poder Executivo “para concorrerem a outros cargos”, em harmonia com o parágrafo anterior que em sua redação original impunha a impossibilidade dos chefes do Poder Executivo de concorrerem ao mesmo cargo. A Emenda 16/97 alterou apenas o parágrafo 5º, permitindo a reeleição para um único período subsequente.
Celso Antônio Bandeira de Mello faz uma análise a partir do princípio da isonomia na disputa eleitoral das regras constitucionais sobre a reeleição. Afirma ser “da mais incontendível certeza” a prevenção constitucional às situações de desequilíbrio entre os candidatos e aduz que o texto original da proposta de emenda previa expressamente a permanência no cargo. Ao ser afastada tal possibilidade, segundo o autor, nada impõe uma leitura que inverta o princípio da igualdade entre os candidatos, em uma aplicação da Constituição que aceita a desigualdade entre o que tenta a reeleição e os demais concorrentes. Permitir que o candidato à reeleição se mantenha do cargo seria “inculcar imbecilidade à norma jurídica”, “o mais rematado absurdo, a mais completa inconsistência, a mais radical estultice, a mais cabal incongruência da Lei Magna”. Sublinha que a interpretação que permite a permanência no cargo faz a emenda inconstitucional, pois ofende as cláusulas pétreas, a igualdade como o primeiro dos direitos e garantias individuais. E afasta o argumento da impossibilidade de aplicação da regra do parágrafo 6º defendendo que os parágrafos 5º, 6º e 9º do artigo 14 da Constituição são “declarações expressas [que] conduzem implicitamente à inelegibilidade do presidente que não se desincompatibilize seis meses antes do pleito”, e que a não restrição do direito dos chefes do Poder Executivo de permanecerem no cargo leva à restrição do direito “de todo e qualquer cidadão concorrer em igualdade de condições com estas autoridades”, em um choque do interesse privado com o interesse público da lisura das eleições.
Mas, nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal preferiu não atuar na remoção de uma “esquizofrenia” constitucional, ainda que decorrente de reforma. Em decisão liminar na ação direta de inconstitucionalidade 1805-1,  o Tribunal, vencido apenas o Ministro Marco Aurélio, afastou a extensão da exigência de desincompatibilização prevista no parágrafo 6º do artigo 14 da Constituição para os candidatos à reeleição em cargos do Poder Executivo.
A ementa da liminar afirma que a Emenda Constitucional 16/97 substituiu uma regra de inelegibilidade absoluta por uma norma de elegibilidade, e que a desincompatibilização – o afastamento do cargo ou da função pública – relaciona-se com a inelegibilidade e não com a possibilidade de reeleição. Aduz que o afastamento para concorrer ao mesmo cargo somente poderia ser exigido se houvesse um comando constitucional expresso, sob pena de criação, “por via exegética”, de “cláusula restritiva da elegibilidade prevista no § 5º do art. 14, da Constituição, na redação da Emenda Constitucional nº 16/1997, com a exigência de renúncia seis meses antes do pleito, não adotada pelo constituinte derivado”.
Para Torquato Jardim, a premissa do “novo regime da reeleição” é a presunção de “comportamento republicano probo do candidato à reeleição”.  O sistema constitucional e eleitoral brasileiro, no entanto, não se caracteriza por presumir o comportamento probo dos agentes públicos. Desde o Império há legislação, constantemente ampliada, prevendo inelegibilidades e incompatibilidades para ocupantes de determinados cargos, a fim de se evitar o uso da função pública para desequilibrar o pleito em benefício próprio ou alheio.
As inelegibilidades por parentesco, a proibição de reeleição, as regras e os prazos de desincompatibilização da Lei Complementar 64/90, evidenciam uma presunção absoluta contra aqueles que ocupam os cargos apontados.
A Lei das Eleições, Lei 9.504/97, lista uma série de condutas no seu artigo 73 que, por presunção legal, são “tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais”. Não é necessário demonstrar a má-fé ou o desvio de finalidade do agente público: a lei presume um comportamento antirrepublicano e ímprobo dos candidatos e não exclui dessa reputação legal aquele que busca a reeleição.
No Brasil não há limitações à reeleição nos cargos parlamentares. Fátima Anastasia, Carlos Ranufo Melo e Fabiano Santos acentuam que na América do Sul todos os países permitem a reeleição de parlamentares, ainda que a Venezuela permita no máximo dois mandatos consecutivos e que a Colômbia tenha aceito essa possibilidade apenas a partir de 2002.
Benjamin Constant se opõe fortemente à limitação da reeleição para o Parlamento. Afirma que a reeleição sucessiva “remunera e favorece as resistências morais” e que “nada é mais contrário à liberdade e ao mesmo tempo mais favorável à desordem que a exclusão forçada dos representantes do povo”.
João Fernando Lopes de Carvalho sublinha que a possibilidade de um parlamentar de concorrer à reeleição sem necessidade de afastar-se do cargo o coloca em uma posição privilegiada, com maior exposição nos meios de comunicação social e com outras formas de divulgar seu trabalho e suas propostas.

domingo, 13 de março de 2011

Distritos e distritões, por Marcos Coimbra

Distritos e distritões

Marcos Coimbra - Marcos Coimbra
Correio Braziliense - 13/03/2011
 

Se formos em frente na adoção do voto distrital, é bom prestar atenção no risco de termos distritos "artificiais", criados com base em cálculos que levam em conta apenas as vantagens que seus autores pensam auferir do modelo
Sociólogo e Presidente do instituto Vox Populi

Pelo que se lê na imprensa, uma das propostas mais cotadas na comissão do Senado para a reforma política é a que altera nossa legislação eleitoral. O voto distrital está em alta, especialmente na versão do chamado “distritão”. Depois de quase 80 anos, parece que os dias do voto proporcional estão contados.

Desde quando se estruturou como país independente e até a década de 1930 (salvo durante o pequeno intervalo em que esteve em vigor a chamada “Lei do Terço”), o Brasil teve voto distrital. Conhecemos, portanto, seus alcances e limites, o que pode nos ajudar nas discussões atuais. Sempre, é claro, lembrando as imensas diferenças que existem entre os dois momentos.

A história do voto distrital começa, por aqui, em 1855, com a promulgação da Lei nº 842, conhecida como “Lei dos Círculos”. Com ela, a elite política do Império pensava aumentar a representatividade do processo eleitoral, aproximando-o dos votantes (não esquecendo que o voto não era universal, dele sendo excluídos mulheres, escravos e incapazes), e evitar que “as maiorias provinciais sufocassem as maiorias locais”, como afirmou o Marques do Paraná, no Senado, em julho daquele ano.

O que o notável presidente do Conselho de Ministros buscava era um mecanismo que melhorasse a representação das diferentes opiniões existentes no país, que seria inibida se apenas as maiorias de cada província fossem levadas em conta. O voto majoritário provincial (igual ao distritão de hoje, diga-se de passagem) refletiria equivocadamente a realidade, pois em um ou mais distritos a maioria local poderia ser outra. Era preciso, portanto, criar uma forma que permitisse que essas opiniões se expressassem, impedindo a ditadura da maioria.

Na eleição dos deputados gerais (equivalentes aos federais de hoje), o sistema estabelecia que um deputado seria eleito por distrito — o “círculo eleitoral”. Esses tinham como referência as freguesias, sendo sua sede a cidade ou vila mais central, na qual os votantes se reuniam em um colégio (em sentido literal) para escolher quem os representaria. Desejavelmente, a população de homens livres de cada distrito seria igual.

Como se vê, não se inventavam distritos arbitrariamente. Ao contrário, as freguesias tinham significado real, e, embora fossem unidades eclesiásticas, eram reconhecidas pelo Estado para fins administrativos. Ninguém desenhou no mapa, pensando na sua conveniência, um distrito para chamar de seu.

Se formos em frente na adoção do voto distrital, é bom prestar atenção no risco de termos distritos “artificiais”, criados com base em cálculos que levam em conta apenas as vantagens que seus autores pensam auferir do modelo. O gerrymandering, nome que os americanos dão às chicanas usadas para manipular fronteiras entre distritos, teria que ser repelido com rigor.

Como seriam, no entanto, definidos distritos “reais”? As freguesias não existem mais, nem nada parecido. Diferentemente de outros países, nossa vida econômica, social, cultural, política e administrativa nunca girou em torno de distritos (ou quaisquer outras formas de regionalização) que pudessem ser considerados “naturais”. Seria estranho que, apenas na hora das eleições, alguns municípios fossem juntados a outros para escolher um mesmo representante.

A Lei nº 842, ao propor distritos de tamanho tão igual quanto possível, aplicou o clássico princípio de “cada cabeça, um voto”, que é comum nos países que têm voto distrital. Será que é isso que pensam seus defensores hoje?

O tamanho das bancadas estaduais na Câmara é o oposto do que teríamos se o adotássemos. Nossa Constituição super-representa os estados menores (fixando o número mínimo de oito cadeiras para cada um) e sub-representa os grandes (fixando o máximo de 70). Hoje, um deputado de São Paulo representa, em média, cerca de 450 mil eleitores, enquanto outro de Roraima, pouco mais que 30 mil. O voto distrital corrigiria essa distorção, mas à custa de uma drástica redução das bancadas de Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Resta saber se o atual Congresso a aprovaria.

Tentando escapar desses problemas, circula na comissão senatorial a ideia do “distritão”. Ela nada mais é que a adoção pura e simples do voto majoritário nas eleições de deputados. Torcendo os conceitos, os estados seriam considerados distritos, nos quais se elegeriam, por maioria, todos os deputados a que têm direito pela legislação em vigor. Parece-se em muito com o que tivemos de 1846 a 1855.

É o pior dos mundos. Vão-se embora os problemas do voto proporcional, mas, também, as virtudes (fortalecimento dos partidos, representação de minorias, voto ideológico, etc.). Cria-se algo que não traz as vantagens do voto distrital (proximidade entre eleitor e eleito, compromisso do eleito com seu eleitorado, etc.) e que consagra o predomínio do indivíduo sobre os partidos.

Saímos do ruim e vamos para o pior. Ainda bem que o Marquês do Paraná não está aqui para ver o que fazem os estadistas do presente.

Reforma política III - o financiamento dos partidos e das campanhas

Provocada pelo prof. Tarso Cabral Violin, ofereço abaixo minhas impressões sobre mais um tema da (eterna) reforma política, gestadas durante a pesquisa de doutoramento:


Os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito privado que desempenham importante função pública na democracia brasileira. Pelo desenho constitucional, detêm o monopólio para a apresentação de candidatos a cargos eletivos, a partir de uma seleção em seus próprios quadros, e são destinatários de garantias e vedações fixadas constitucionalmente.
A existência de financiamento público para os partidos – uma das garantias constitucionais – mostra-se legítima a partir dessa conformação constitucional. Esse direito a prestações do Estado, ao lado do direito de antena, justifica-se em face da impossibilidade da manutenção dos partidos apenas com as contribuições dos militantes e da inconveniência de sua dependência financeira de fontes privadas, o que pode permitir que interesses particulares influenciem sua atuação.
Pinto Ferreira defende o financiamento dos partidos pelo fundo partidário para garantir sustentação às agremiações partidárias e “vedar a arrecadação de dinheiro em fontes inidôneas, o que é comum no Brasil, com os ‘banqueiros de bicho’, ‘caixinhas’, ‘lideranças ricas’, permitindo a formação de oligarquias dominantes”.
A divisão do fundo partidário não pode configurar uma cláusula de diferenciação ou um “prêmio ao poder” e “uma tentativa camuflada da redução externa partidária e do próprio espectro político”. Há de ser feita sob critérios razoáveis, de preferência estabelecidos pela representação política, sem ofensa ao princípio constitucional da máxima igualdade na disputa eleitoral e ao princípio constitucional da necessária participação das minorias nas instituições políticas e no debate público.
Uma proposta para libertar os partidos e os candidatos das amarras do poder econômico, constante na eterna reforma política, é o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais. A ideia é aumentar o aporte financeiro da União e possibilitar que a disputa eleitoral se realize apenas com dinheiro público.
Além de exigir uma fiscalização bastante acurada, sob pena de sua inocuidade, a adoção do financiamento público exclusivo, com a distribuição de recursos vinculada ao desempenho eleitoral ou à representatividade parlamentar, ofende o direito de oposição, ao impedir – na prática – a obtenção de representação pelos partidos menores.
Interessante ressaltar que Carlos Santiago Nino analisa a questão de um ponto de vista diametralmente oposto. Constatando que os custos elevados de uma campanha afastam candidatos sem ligação com poderosos interesses privados ou grupos de interesse, o que leva ao afastamento de uma cidadania, propõe a proibição absoluta de financiamento privado, combinado com o acesso obrigatório aos meios de comunicação.
A proposta apresentada não faz referência à distribuição entre os partidos ou candidatos dos recursos públicos ou do tempo nos meios de comunicação para a divulgação das candidaturas e das propostas. A distribuição pela representatividade, como já visto, não corresponde ao desenho constitucional democrático. A igual distribuição, no entanto, dificilmente alcançaria um consenso entre os partidos e os parlamentares, embora corresponda à noção de igualdade como nivelamento, exigida na participação do processo democrático para maximizar sua qualidade epistêmica na visão de Carlos Santiago Nino.
Ainda que compreendida como realização da igualdade exigida para a efetivação da democracia deliberativa e de sua capacidade epistêmica, a vedação absoluta ao financiamento privado contrasta com a autonomia pessoal.
Parece que a questão deve se concentrar no controle dos recursos e na identificação de sua origem.
Nas democracias de massa, a exigência de recursos financeiros para a realização de propaganda surge como um forte elemento de desigualdade. Assim, o controle de financiamento de campanhas se justifica a partir do comando constitucional de máxima igualdade entre os candidatos. A atuação do Estado na regulamentação das contribuições e dos gastos tem razões igualitárias: as restrições se justificam pela demanda de grupos concentrada na “oportunidade plena e equitativa para participar no debate público”, relacionada, portanto, à sua liberdade de expressão.
Reinhold Zippelius se preocupa com a dependência dos partidos de interesses que possam anuviar sua atuação em defesa do bem comum, ressaltando a necessidade de publicidade dos debates parlamentares, inclusive nas comissões, das motivações das leis e da atuação dos grupos de interesses. Indica forte inquietação principalmente com a questão do financiamento das agremiações partidárias, afirmando a problemática aceitação de donativos privados e a insuficiência das contribuições dos filiados. Apresenta a possibilidade de financiamento complementar dos partidos pelo Estado, mas sem isso implique a influência do Estado nos partidos, o que pode ser assegurado pela distribuição de fundos na proporção dos votos recebidos, embora isso leve à consolidação de uma maioria já constituída. E defende a proibição de “donativos aos quais se associem notoriamente influências indesejáveis”, como os provenientes de poderes externos e os concedidos “na expectativa de obter uma determinada vantagem económica ou política”. Acentua, ainda, a necessidade de transparência no financiamento dos partidos.
Lauro Barreto questiona a substituição da proibição absoluta de contribuições para a campanha eleitoral, com exceção do fundo partidário e da colaboração de militantes e filiados (prevista no artigo 91 da Lei 5.682/71), pela ampla liberação da participação do empresariado no financiamento da disputa: “Escancarou-se (...) a preponderância da moeda sobre as idéias e propostas no processo eleitoral”.
A questão do financiamento das campanhas eleitorais se refere também à configuração livre do mandato representativo, ao impor a atuação imparcial do agente público, livre de vinculações a interesses individuais.
Mas sua relação mais íntima é com o princípio constitucional da máxima igualdade na disputa eleitoral, em razão da qual, para Óscar Sánchez Muñoz, sempre a partir do ordenamento jurídico espanhol, impõem-se medidas negativas e medidas positivas. As medidas positivas se relacionam com a limitação de gastos e de ingressos, com uma regulamentação rígida sobre a arrecadação e a aplicação de recursos, a partir da delimitação legal da campanha, da limitação absoluta dos gastos eleitorais com o estabelecimento de um teto máximo de gastos, das limitações específicas de determinados tipos de gastos eleitorais e em relação aos ingressos, com a delimitação sobre a legalidade de doações de pessoas jurídicas e estrangeiras e com a exigência de publicidade dos montantes doados e dos doadores.
Na questão das doações das pessoas jurídicas, ressalta Óscar Sánchez Muñoz, duas opções se colocam. A primeira delas é a do modelo liberal de transparência, em que as doações são livres, mas há necessariamente que se dar publicidade da origem dos recursos. É o modelo adotado na Alemanha e no Reino Unido e sua eficácia depende da sua fiscalização. A outra opção se refere ao modelo de financiamento cidadão, em que as doações das pessoas jurídicas são vedadas. A contribuição para uma campanha é vista como uma faceta do direito de participação política, inexistente na esfera das pessoas jurídicas.
O legislador brasileiro trata das doações de pessoas jurídicas nas disposições transitórias da Lei 9.504/97, em seu artigo 81, em evidente titubeio, com a sua admissibilidade até o limite de dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição. Não parece haver problema com essa permissão – desde que sejam observados os princípios da Administração Pública quando da relação dessas pessoas jurídicas com os mandatários que tiveram suas campanhas financiadas por elas.
O financiamento público dos partidos políticos, assinala Óscar Sánchez Muñoz, é uma medida positiva imposta pelo princípio da igualdade entre os candidatos. A subvenção estatal, direta e indireta, às agremiações partidárias justifica-se pelas funções que elas cumprem na democracia e pela conveniência de mantê-las fora de uma relação de absoluta dependência de fontes de financiamento. Para que o financiamento público seja coerente com o princípio da igualdade, ele deve se revestir de uma finalidade compensatória, destinada a reequilibrar a diferente distribuição de um fator que é tomado como irrelevante (e que, portanto, deve ser neutralizado) na disputa eleitoral – o poder econômico.
A partir dessas considerações, resta inconcebível que a distribuição do financiamento público – no caso brasileiro, das cotas do fundo partidário – seja realizada de maneira a permitir uma acentuação das diferentes capacidades econômicas das agremiações partidárias. Seria ainda mais grave para a democracia pluralista brasileira a adoção do financiamento público exclusivo com critérios excludentes – ou exterminadores – de divisão.
Em relação às regras do financiamento de campanhas, a jurisprudência brasileira tende a desconsiderar “erros formais” e passa até a desconsiderar determinadas punições por não as considerar “proporcionais”. Assim se dá com a aplicação do artigo 30A da Lei 9.504/97, caso em que o Tribunal Superior Eleitoral deixa de aplicar a sanção por considerá-la inadequada a alguns casos de descumprimento da legislação eleitoral.
Vale ressaltar, aqui, a lição de W. J. M. Mackenzie, para quem “es más fácil perseguir por razón de inobservancias técnicas que por delitos substantivos” e como a legislação eleitoral tem exigências formais, “tan solo se necesita probar la sencilla proposición de que el dinero se ha gastado, no la obscura proposición de que se haya hecho de él un uso inmoral”. Assim, “la vigilancia y control por las autoridades públicas o por los partidos entre si se simplifican muchísimo”.
Similar é a opinião de Pedro Henrique de Távora Niess, que defende a punição de toda irregularidade, pois “derive do método mais simples e tradicional ou da técnica mais sofisticada e moderna, caracteriza a utilização do poder econômico de forma abusiva, porque investe contra o equilíbrio possível do certame eleitoral”. No mesmo sentido, ainda ressalta-se o posicionamento de José Antonio Fichter, para quem o uso de quantia além do permitido revela a ilegitimidade e impõe a desconstituição do mandato, não sendo necessário demonstrar a sua infuência para a obtenção da vitória nas urnas.
Em virtude da leitura jurisprudencial, no entanto, exige-se o abuso do poder econômico para a imposição das sanções mais graves. A potencialidade de alterar o resultado da eleição torna-se elemento para a cominação da cassação de registro e da pena de inelegibilidade. 
Para a apuração e punição do abuso de poder econômico, são previstas as ações de investigação judicial eleitoral e de impugnação de mandato eletivo, bem como e o recurso contra a diplomação. A previsão dos casos de abuso e de instrumentos processuais, no entanto, não encontra efetividade na esfera política capaz de garantir, ao mesmo tempo, a igualdade na disputa eleitoral e a autenticidade na formação do voto, em face da fragilidade da legislação, dos critérios do Tribunal Superior Eleitoral e da engenhosidade humana.

terça-feira, 8 de março de 2011

Reforma política II - o voto distrital

Outro tema que volta e meia surge na arena política é a adoção do voto distrital. A principal ideia do voto distrital é aplicação do princípio majoritário para a composição das casas parlamentares, com total aniquilação das minorias e ofensa à democracia representativa (já dizia Cármen Lúcia em 1998 e antes dela León Duguit e Maurice Hauriou). 
Trago um pouco do que trabalhei na tese:
No caso brasileiro, além de historicamente ter se revelado instrumento de desmoralização e corrupção, o sistema distrital é também inconstitucional. Com o sistema distrital visa-se adotar o princípio majoritário para a eleição de deputados e vereadores, com a divisão dos estados e municípios em distritos. A sua adoção, ainda que por emenda constitucional, está vedada pela intangibilidade dos princípios constitucionais estruturantes.

A adoção do princípio majoritário com a divisão em distritos significa dotar uma pequena maioria do poder de determinar o interesse público e excluir a representação de todos os que não escolheram o mais votado. A divisão em distritos leva, por si, a uma desigualdade de fato na representação, fortemente agravada pela adoção do princípio majoritário.
Os que propõem tal mudança ressaltam as vantagens do sistema majoritário para a formação de governos funcionais e para o fortalecimento dos partidos políticos, além dos benefícios da divisão em distritos, como a diminuição do custo das campanhas eleitorais, a possibilidade de fiscalização e acompanhamento efetivos das condutas eleitorais e uma identificação maior entre o representante e os representados.
Alberto Rollo e João Fernando Lopes de Carvalho defendem a distritalização do voto, que permitiria uma fidelidade do eleito com o partido e com seu eleitorado a partir de compromissos, além de baratear a campanha e estabelecer uma disputa mais clara, sem brigas partidárias internas. Assim o faz também Maria Garcia: defende um sistema eleitoral majoritário e distrital, juntamente com a possibilidade de revocatória de mandatos e com a redução de representantes.
Para que tal sistema não ofenda também o princípio da igualdade do voto, é necessário que a distritalização (divisão dos distritos) leve em consideração a proporção entre os distritos das cadeiras em disputa e do corpo eleitoral, não seja inspirada por recortes étnicos, religiosos, linguísticos, ideológicos ou partidários pré-existentes e que não seja uma divisão tendenciosa.
As propostas de reforma ora defendem esse modelo de forma pura, ora o desejam combinado com o sistema proporcional, em um sistema distrital misto.
Saltam aos olhos os problemas do sistema puro. Em primeiro lugar, não há espaço para a representação das minorias, o que contraria toda a preocupação de espelhar no Parlamento – espaço privilegiado da formação da vontade política – as diversas concepções de Estado e de bem viver presentes nasociedade brasileira. Adotar o princípio majoritário para a eleição de deputados e vereadores é renunciar à conquista do espaço de dissenso qualificado pela coexistência, dentro das regras do jogo democrático e com atuação efetiva, de partidos políticos que representam um amplo leque de ideologias. Vai de encontro ao pluralismo político, fundamento da República brasileira e ao princípio constitucional de necessária participação das minorias nas instituições políticas e do debate público. É flagrantemente inconstitucional.
Sobre o sistema misto, seja no modelo alemão, seja no modelo mexicano, parece agregar as desvantagens dos dois princípios. 
Vale lembrar, ainda, do preâmbulo do primeiro anteprojeto de Constituição, apresentado por Bernardo Cabral, onde o sistema proporcional estava plasmado:
Os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Nacional Constituinte, afirmam, no preâmbulo desta Constituição, o seu propósito de construir uma grande Nação baseada na liberdade, na fraternidade, na igualdade, sem distinção de raça, cor, procedência, religião ou qualquer outra, certos de que a grandeza da Pátria está na saúde e felicidade do povo, na sua cultura, na observância dos direitos fundamentais da pessoa humana, na eqüitativa distribuição de bens materiais e culturais, de que todos devem participar. Afirmam, também, que isso só pode ser obtido com o modo democrático de convivência e de organização estatal, com repulsa a toda forma autoritária de governo e a toda exclusão do povo do processo político, econômico e social.
A soberania reside no povo, que é fonte de todo o poder; os poderes inerentes à soberania são exercidos por representantes eleitos ou por consulta. O voto é secreto, direto e obrigatório, e as minorias terão representação proporcional no exercício do poder político.