quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O voto impresso, o STF e a urna eletrônica



Ontem o Supremo Tribunal Federal decidiu suspender liminarmente a exigência do voto impresso para as eleições de 2014, na ADIn 4543 proposta pelo Procurador-Geral da República. A decisão, unânime, afirma que o voto impresso com a identificação digital poderia ofender o sigilo do voto.
Ok, me parece um argumento razoável. Não poderia, de modo algum, haver algum tipo de marcação na cédula impressa que permitisse, de alguma forma, a identificação do eleitor, direta ou indiretamente. Segundo a Advocacia-Geral da União, a identificação se refere à urna e não ao eleitor. 
A relatora, Ministra Cármen Lúcia, concede a liminar afirmando a proibição do retrocesso em relação ao direitos políticos, que o sistema conta com "segurança incontestável, como demonstrada centenas de vezes e invulnerável como comprovado”. Algumas passagens dos votos falam em prestação de contas do eleitor com o candidato. Sobre a auditoria necessária em algumas urnas, a relatora afirmou: "Com a obrigatoriedade da auditoria, poderá haver uma demora significativa para a proclamação dos resultados e a indefinição tem custo imensurável para o país". 
Hipérboles à parte, não vejo muitos problemas na demora em algumas horas para a divulgação do resultado. Mas corro o sério risco de restar isolada. Também não vejo como os mesmos argumentos de possibilidade de quebra do sigilo do voto não são considerados em relação à urna eletrônica. Não estou afirmando que há identificação do voto de cada eleitor no sistema eletrônico de votação atualmente adotado. Desconfio, apenas, que pode haver, pois temos um sistema em que o número do título de eleitor é que libera a máquina de votar. 
E todos falaram no custo da implantação do voto impresso. Ora, ora. O custo da votação e da apuração nunca foi um elemento levado em consideração pela administração eleitoral. Pensem, por exemplo, na urna eletrônica e sua substituição frequente por novas máquinas. E na identificação biométrica, que tem como frágil argumento evitar que uma pessoa vote em lugar de outra. Que é crime, segundo o Código Eleitoral. E que tem uma ocorrência muito pequena em face do eleitorado brasileiro. Não obstante - e sem entrar na discussão sobre a sociedade de controle - está sendo realizada a identificação biométrica com altos custos de recadastramento e de adaptação das urnas eletrônicas. 
O voto impresso pode ser inconveniente, principalmente para a Justiça Eleitoral. Mas não tem vício de inconstitucionalidade. Ou melhor, não é inconstitucional.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Nova Constituição: para quem?

O recém-criado PSD pretende apresentar uma proposta de emenda constitucional visando à eleição de constituintes em 2014. Nada de novo, haja vista a constante sugestão de “mini constituintes” para levar a cabo reformas consideradas “essenciais”, como a trabalhista, a tributária e a política. Ocorre que não existe mínima convergência sobre em que sentido devem ser constituídos os novos modelos. Nessa seara, duas propostas de emenda tramitam hoje no Senado: uma do PMDB/SE e a outra do DEM/GO. Na Câmara, uma proposição tramita desde 1997, apresentada pelo PDT/RJ, e que defende um rito diferenciado para a mudança dos artigos constitucionais referentes aos direitos e partidos políticos, às competências dos entes federados e ao sistema tributário. A do PSDB/SP (PEC 447/2005) também propõe uma revisão, todavia, com algumas limitações a temas como a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação de poderes e os direitos e as garantias individuais. A PEC 157/2003, apresentada pelo então PFL/SP, fala em Assembleia de Revisão Constitucional e ataca o texto atual e seu alto nível de detalhamento. No fundo, deseja-se adaptar a ordem constitucional aos planos dos governantes do momento (ou de quem quer lhe tomar o lugar), ao sabor das maiorias eventuais e das palavras de ordem mais populares.
Todavia, isso contraria frontalmente a noção de constitucionalismo a duras penas conquistada no século 20 e que, inspirada por uma preocupação de limitação do poder e de garantia de direitos fundamentais, presume sua permanência, repudiando sua adequação cotidiana às vontades ainda que democráticas. Isso pode parecer estranho no sistema brasileiro, em que a Constituição foi emendada mais de 70 vezes. Ocorre que o núcleo da Constituição permanece intacto, o que tem permitido, mais recentemente, fortes avanços sociais mediante uma atuação significativa do Estado brasileiro como propulsor do desenvolvimento.
As emendas têm se mostrado mais fáceis do que se imaginava originalmente, permitindo mudanças em temáticas conjunturais. Ademais, o Judiciário tem promovido mutações em alguns dispositivos. Assim, propor uma revisão estrutural é defender o amesquinhamento da Carta Magna. Poucas vezes os nossos representantes no Legislativo estiveram tão deslegitimados para levar a efeito a ideia. Uma Constituinte seria uma farsa completamente deslocada em face da absoluta ausência de um fenômeno social justificador de tal reestruturação.
É necessário recordar o contexto em que foi escrita a Constituição de 1988. O final da ditadura militar, a rejeição da proposta de eleição direta para Presidente, o anseio por uma ordem democrática e pela volta da liberdade impulsionaram a sociedade na construção de uma nova ordem. E a sociedade efetivamente se envolveu nesse projeto. Movimentos sociais discutiram o que deveria estar no texto. Juristas apresentaram suas propostas, assim como os “notáveis”. Mas também o povo, por meio de 72.719 formulários enviados aos constituintes, 11.989 sugestões apresentadas diretamente às comissões da Assembleia Nacional Constituinte e 122 emendas populares com mais de 12 milhões de assinaturas. Esse envolvimento dificilmente se repetiria hoje.
Na atual conjuntura, uma nova Constituição nada mais seria do que um golpe institucional apto a, sob a justificativa de concretizar os anseios do povo e da modernização, atender: 1) a desejos majoritários contrários a direitos fundamentais; 2) a interesses privados travestidos de públicos; 3) a necessidades oportunistas de setores da elite dominante; 4) a retrocessos advindos de concepções unilaterais moralizantes.
Quem mais ganharia com uma nova Constituinte seriam os partidos “sem alma”, prontos para dar apoio a quem lhes “der a maior oferta”. Uma nova Constituição, mais do que um processo político, implicaria a criação de um verdadeiro “mercado”. A Constituição de 1988 certamente foi feita para o povo, ainda que sem ter representantes eleitos exclusivamente para a tarefa. Defender nova Constituinte implicaria uma Constituição pretensamente feita pelo povo, porém certamente contra ele.
Eneida Desiree Salgado, advogada, é professora de Direito Constitucional e Eleitoral da UFPR e do Curso de Mestrado da UniBrasil. Emerson Gabardo, advogado, é professor de Direito Administrativo da UFPR e coordenador adjunto do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da PUCPR.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

As investidas das maiorias

Está cada vez mais forte a defesa do voto distrital. Com argumentos que beiram a irresponsabilidade ou, na melhor das hipóteses, a ingenuidade. Defende-se o distritão, o desprezo das minorias, a governabilidade, a existência de poucos partidos, enfim, tudo o que já experimentamos e não melhorou em nada a nossa democracia. Como apontou o prof. Emerson Cervi no III Seminário de Sociologia e Política, não há nenhuma relação entre o sistema eleitoral e a qualidade da representação. A falta de credibilidade do Poder Legislativo não se deve ao sistema proporcional. Como são os partidos que fazem o primeiro filtro dos candidatos, e colocam os nomes à disposição da escolha do eleitorado, deve-se atribuir a eles - os partidos, que se pretendem fortalecer (não todos, claro) pela milésima reforma política - a responsabilidade primeira pela qualidade da representação. O resto é balela.