domingo, 20 de março de 2011

Reforma política IV - a reeleição

Continuando com os posts de domingo sobre a reforma política, trago hoje a parte da pesquisa sobre reeleição:


No Brasil, o poder de reforma da Constituição atingiu o cerne do princípio constitucional da máxima igualdade entre os candidatos, ao acolher, em oposição à história política e constitucional do país, o instituto da reeleição para os cargos do Poder Executivo.  A irrelegibilidade refletia uma garantia republicana e era quase um dogma.  Constituía uma das escolhas constituintes fundamentais.
Paulo Peretti Torelly aponta que a vedação à reeleição consagra “objetivamente a isonomia entre os candidatos e as respectivas concepções políticas que representam” e que essa interdição é constitutiva da instituição republicana. Dispositivo expresso de todos os textos constitucionais, com exceção da Constituição de 1937, a proibição de um mandato sucessivo para os chefes do Poder Executivo expressa “um limite material presente na coerência do todo normativo da ordem constitucional assentada na idéia de isonomia”.
Sua adoção leva à quebra de uma lógica de tratamento igual, ao menos formalmente, dos candidatos ao pleito. A desigualdade se estabelece simplesmente a partir da dupla condição de candidato e chefe da Administração,  configurando uma “regra de privilégio”, um “Cavalo de Tróia”.  Paulo Bonavides afirma que o Brasil está em crise de legitimidade, uma crise constituinte, “desde a Emenda materialmente inconstitucional da reeleição do presidente da República”.  Igualmente crítico à adoção da reeleição, contrária a toda tradição, prudência e bom senso, manifesta-se Fábio Konder Comparato.
Essa não é a opinião de Vera Maria Nunes Michels, que vê na possibilidade de reeleição dos chefes do Poder Executivo “algo saudável numa democracia”, pois permite que os eleitores renovem o mandato de bons administradores. Afirma ainda a autora que a maior exposição do abuso de poder político propiciada pela reeleição demandará normas eficazes e maior conscientização dos eleitores. 
Para Aroldo Mota, analisando a possibilidade de reeleição, “[a] influência do poder público no resultado da eleição é muito pequena”. Além disso, afirma que ou se adota a reeleição ou se proíbe, não fazendo sentido exigir que o ocupante do cargo se afaste para a campanha.
Karl Loewenstein, ao se referir ao controle sobre o processo eleitoral em regimes autoritários, aponta a incorporação de vantagens na campanha eleitoral para os partidos governamentais como um método antidemocrático.  Mesmo que não se possa configurar o regime político brasileiro em 1997 como autoritário, parece inegável que a incorporação da possibilidade de reeleição para os chefes do Poder Executivo permite uma vantagem pouco democrática na disputa eleitoral.  E é inconstitucional.
Ademais, com a alteração apenas de um parágrafo da Constituição, sem a alteração dos demais dispositivos do artigo 14, o sistema constitucional restou incoerente e iníquo: permanece a necessidade de afastamento dos titulares do Poder Executivo para concorrer a outros cargos e a inelegibilidade por parentesco, mas o candidato à reeleição pode permanecer no cargo que novamente disputa.
O parágrafo 6º do artigo 14 da Constituição referia-se à necessidade de renúncia ao mandato pelos chefes do Poder Executivo “para concorrerem a outros cargos”, em harmonia com o parágrafo anterior que em sua redação original impunha a impossibilidade dos chefes do Poder Executivo de concorrerem ao mesmo cargo. A Emenda 16/97 alterou apenas o parágrafo 5º, permitindo a reeleição para um único período subsequente.
Celso Antônio Bandeira de Mello faz uma análise a partir do princípio da isonomia na disputa eleitoral das regras constitucionais sobre a reeleição. Afirma ser “da mais incontendível certeza” a prevenção constitucional às situações de desequilíbrio entre os candidatos e aduz que o texto original da proposta de emenda previa expressamente a permanência no cargo. Ao ser afastada tal possibilidade, segundo o autor, nada impõe uma leitura que inverta o princípio da igualdade entre os candidatos, em uma aplicação da Constituição que aceita a desigualdade entre o que tenta a reeleição e os demais concorrentes. Permitir que o candidato à reeleição se mantenha do cargo seria “inculcar imbecilidade à norma jurídica”, “o mais rematado absurdo, a mais completa inconsistência, a mais radical estultice, a mais cabal incongruência da Lei Magna”. Sublinha que a interpretação que permite a permanência no cargo faz a emenda inconstitucional, pois ofende as cláusulas pétreas, a igualdade como o primeiro dos direitos e garantias individuais. E afasta o argumento da impossibilidade de aplicação da regra do parágrafo 6º defendendo que os parágrafos 5º, 6º e 9º do artigo 14 da Constituição são “declarações expressas [que] conduzem implicitamente à inelegibilidade do presidente que não se desincompatibilize seis meses antes do pleito”, e que a não restrição do direito dos chefes do Poder Executivo de permanecerem no cargo leva à restrição do direito “de todo e qualquer cidadão concorrer em igualdade de condições com estas autoridades”, em um choque do interesse privado com o interesse público da lisura das eleições.
Mas, nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal preferiu não atuar na remoção de uma “esquizofrenia” constitucional, ainda que decorrente de reforma. Em decisão liminar na ação direta de inconstitucionalidade 1805-1,  o Tribunal, vencido apenas o Ministro Marco Aurélio, afastou a extensão da exigência de desincompatibilização prevista no parágrafo 6º do artigo 14 da Constituição para os candidatos à reeleição em cargos do Poder Executivo.
A ementa da liminar afirma que a Emenda Constitucional 16/97 substituiu uma regra de inelegibilidade absoluta por uma norma de elegibilidade, e que a desincompatibilização – o afastamento do cargo ou da função pública – relaciona-se com a inelegibilidade e não com a possibilidade de reeleição. Aduz que o afastamento para concorrer ao mesmo cargo somente poderia ser exigido se houvesse um comando constitucional expresso, sob pena de criação, “por via exegética”, de “cláusula restritiva da elegibilidade prevista no § 5º do art. 14, da Constituição, na redação da Emenda Constitucional nº 16/1997, com a exigência de renúncia seis meses antes do pleito, não adotada pelo constituinte derivado”.
Para Torquato Jardim, a premissa do “novo regime da reeleição” é a presunção de “comportamento republicano probo do candidato à reeleição”.  O sistema constitucional e eleitoral brasileiro, no entanto, não se caracteriza por presumir o comportamento probo dos agentes públicos. Desde o Império há legislação, constantemente ampliada, prevendo inelegibilidades e incompatibilidades para ocupantes de determinados cargos, a fim de se evitar o uso da função pública para desequilibrar o pleito em benefício próprio ou alheio.
As inelegibilidades por parentesco, a proibição de reeleição, as regras e os prazos de desincompatibilização da Lei Complementar 64/90, evidenciam uma presunção absoluta contra aqueles que ocupam os cargos apontados.
A Lei das Eleições, Lei 9.504/97, lista uma série de condutas no seu artigo 73 que, por presunção legal, são “tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais”. Não é necessário demonstrar a má-fé ou o desvio de finalidade do agente público: a lei presume um comportamento antirrepublicano e ímprobo dos candidatos e não exclui dessa reputação legal aquele que busca a reeleição.
No Brasil não há limitações à reeleição nos cargos parlamentares. Fátima Anastasia, Carlos Ranufo Melo e Fabiano Santos acentuam que na América do Sul todos os países permitem a reeleição de parlamentares, ainda que a Venezuela permita no máximo dois mandatos consecutivos e que a Colômbia tenha aceito essa possibilidade apenas a partir de 2002.
Benjamin Constant se opõe fortemente à limitação da reeleição para o Parlamento. Afirma que a reeleição sucessiva “remunera e favorece as resistências morais” e que “nada é mais contrário à liberdade e ao mesmo tempo mais favorável à desordem que a exclusão forçada dos representantes do povo”.
João Fernando Lopes de Carvalho sublinha que a possibilidade de um parlamentar de concorrer à reeleição sem necessidade de afastar-se do cargo o coloca em uma posição privilegiada, com maior exposição nos meios de comunicação social e com outras formas de divulgar seu trabalho e suas propostas.

Um comentário:

Guilherme Amintas disse...

Parabéns professora Eneida. Excelente artigo. Bom trabalho e forte abraço. Guilherme Amintas.