domingo, 11 de setembro de 2011

Sistema eleitoral no Mercosul, sob a perspectiva do Direito Brasileiro

Para analisar o sistema eleitoral no Mercosul, escolhi tratar rapidamente sobre os sistemas adotados nos demais países para depois tratar do sistema brasileiro e das propostas para o Parlamento do Mercosul. Apenas para esclarecer o tema, sistema eleitoral é a fórmula que traduz a vontade popular em representação política, ou, como afirma José Afonso da Silva “o conjunto de técnicas e procedimentos que se empregam na realização das eleições, destinados a organizar a representação do povo no território nacional”. Penso que a escolha do sistema eleitoral a ser aplicado é uma decisão política fundamental de âmbito constitucional e que influencia a participação popular na formação da vontade política e a organização partidária.
A fórmula eleitoral pode ser majoritária (em que são eleitos os candidatos que alcançarem o maior número de votos) ou proporcional (que leva em consideração os votos dados ao partido ou coligação e os atribuídos a outros candidatos sob a mesma legenda para determinar os eleitos).  Quando há a adoção do princípio majoritário para a eleição do Parlamento com a divisão em distritos da circunscrição, fala-se em sistema distrital. No Brasil, adota-se o princípio proporcional para a formação das casas parlamentares, com exceção do Senado Federal.
O sistema proporcional pode ser de listas fechadas e hierarquizadas (nas quais a ordem dos candidatos a preencherem as vagas obtidas pelos partidos é definida anteriormente pelos próprios partidos) e de listas abertas – ou, tecnicamente, em face do monopólio dos partidos para o registro de candidatos, listas fechadas, mas não hierarquizadas – em que é permitido ao eleitor estabelecer quais candidatos de cada partido serão eleitos.
Jairo Nicolau evidencia as preocupações do sistema proporcional: “a) assegurar que a diversidade de opiniões de uma sociedade esteja refletida no Parlamento; e b) garantir eqüidade matemática entre os votos dos eleitores e a representação parlamentar”. José Joaquim Gomes Canotilho ressalta que o sistema proporcional invoca a igualdade material (ao atender à exigência de voto igual), a adequação à democracia partidária e a representação de todos os grupos sociais.
Os opositores do sistema proporcional defendem a superioridade das vantagens do princípio majoritário, como o favorecimento da governabilidade, a estabilidade dos governos, capacidade de ação, a tendência ao bipartidarismo ao impossibilitar, na prática, a sobrevivência de pequenos partidos e a formação de uma oposição consistente.
Bem, falemos agora do Parlamento do Mercosul, “órgão de representação dos cidadãos” do Estados-membros do bloco, sediado em Montevidéu, é formado por representantes do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Uruguai. Sua constituição se deu em dezembro de 2006, com uma sessão de abertura no Senado Federal, com a presença do então presidente Lula.
Não há atuação legislativa propriamente dita do Parlamento do Mercosul, mas há de se ressaltar que a função de um parlamento não se resume à elaboração de normas legais. A função de fiscalização – a mais relevante, para John Stuart Mill – está fortemente presente entre a competência do Parlasul, tanto quando da verificação em relação à observância das normas, como a elaboração de informes sobre direitos humanos, como o recebimento de informações dos órgãos decisórios e consultivos e, ainda, sobre a execução do orçamento da secretaria do Mercosul. Em uma ação mais próxima ao que usualmente se espera dos parlamentos, o Parlasul elabora ditames sobre os projetos de normas do Mercosul e estudos e projetos de normas nacionais.
O Parlamento do Mercosul, em face das distintas configurações populacionais dos países que formam o bloco, a representação – embora relacionada aos cidadãos e não aos Estados – conta com uma proporcionalidade atenuada, e que foi sendo modificada no tempo. De uma representação idêntica a todos os Estados, o Brasil passou (ou deveria ter passado) a 37 parlamentares na legislatura 2011-2014, a Argentina a 26, e o Paraguai e o Uruguai a 18. Para a legislatura 2015-2018 são previstos 75 parlamentares brasileiro, 43 argentinos, 18 paraguaios e 18 uruguaios.
Exige-se, pelo protocolo e segundo o regimento interno do Parlamento do Mercosul, a eleição por sufrágio direto, universal e secreto dos cidadãos dos Estados Parte (art. 7).  O mandato é de quatro anos e se permite a reeleição (art. 12). Há proibição expressa de mandato imperativo e garantia de independência no exercício da função (art. 13). O protocolo de Montevidéu estabelece que, para além da exigência do sufrágio direto, universal e secreto dos cidadãos, a eleição se regerá pelo previsto na legislação de cada Estado Parte, desde que assegurem adequada representação por gênero, etnias e regiões. Há previsão de suplentes, eleitos da mesma forma e de um “Dia do Mercosul Cidadão”, para a eleição simultânea dos parlamentares em todos os Estados Partes.
O Paraguai realizou eleição direta para parlamentares do Mercosul em abril de 2008, em que concorreram 20 lemas, em eleição conjunta com a escolha de presidente, governadores, senadores e deputados. A Resolução nº 55/2007 do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, que convoca as eleições, estabeleceu os cargos a serem eleitos, entre eles 18 parlamentares titulares e 18 parlamentares suplentes do Mercosul, que concorreram em uma circunscrição única, como os senadores. O sistema eleitoral adotado é o informado pelo princípio proporcional, de lista fechada (e bloqueada). O Código Eleitoral paraguaio (Lei nº 834/96) prevê, ao tratar das eleições em geral, a presença de pelo menos uma mulher a cada cinco lugares das listas partidárias, mas pelas candidaturas ao Parlasul apresentadas no site do TSJE nem todos os partidos ou lemas seguiram esta regra, embora a maioria o tenha feito, o que permitiu que a representação paraguaia fosse composta por algumas mulheres. Cinco lemas conseguiram eleger parlamentares ao Parlasul no Paraguai.
No Uruguai, ainda não houve eleição direta para o Parlamento do Mercosul, em virtude de dificuldades na definição do sistema eleitoral. O sistema eleitoral uruguaio para a formação das casas parlamentares é fundamentado no princípio proporcional, com a apresentação dos candidatos pelos partidos em listas fechadas (lemas). A eleição para o Senado é realizada em circunscrição nacional e para a Assembleia há divisão territorial. Existe ainda a figura dos sublemas, que são divisões dentro dos partidos e que apresentam suas listas: o Uruguai adota desde 1910 o “doble voto simultáneo” que permite que o eleitor vote no partido e escolha, neste partido, os candidatos que mais lhe agradem.
A Argentina ainda não realizou eleições diretas nem conta com a regulamentação destas, ainda que planeje eleger seus parlamentares do Mercosul neste ou no próximo ano. São várias as propostas apresentadas, que divergem predominantemente em relação à circunscrição a ser considerada. Todas convergem, no entanto, pela adoção do sistema proporcional, de listas fechadas e bloqueadas, sistema adotado para as eleições argentinas. O Código Eleitoral argentino exige a apresentação de 30% de mulheres “y en proporciones com posibilidad de resultar electas” (art. 60, 3).
Encontrei dois projetos de lei sobre o assunto, ambos iniciados no Senado argentino. O primeiro (S-2555/2010), encabeçado por Adolfo Rodríguez Saa, estabelece a eleição por distritos, coincidentes com as Províncias e a Cidade Autônoma de Buenos Aires. Cada distrito votaria em uma lista com dois titulares e dois suplentes e se aplicaria – alegadamente – o método proporcional D’Hont. Para a definição dos eleitos, os primeiros 24 lugares seriam ocupados pelo primeiro candidato da lista que em cada distrito tenha obtido a maior quantidade de votos válidos. As demais, ocupadas pelos candidatos eleitos em segundo lugar, de acordo com a quantidade de votos obtidos. Este projeto, que prevê a primeira eleição em 2011, está na Comissão de Assuntos Constitucionais desde 19 de agosto de 2010.
O outro projeto (S-4005/2010), apresentado por Elida Vigo, prevê que as listas devem ser alternadas em relação ao gênero e que o candidato a titular e o candidato a suplente, em cada lugar na lista, não podem ser do mesmo sexo. Não são permitidos dois candidatos titulares do mesmo distrito eleitoral. Segundo essa proposta, 24 parlamentares seriam eleitos por distritos (divididos como no projeto anterior, mas que cujas listas apresentariam apenas um candidato e um suplente) e os demais pelo sistema proporcional em uma circunscrição nacional. Adotaria-se, portanto, um sistema misto. Cada lista poderá apresentar quantos candidatos forem as cadeiras a serem preenchidas. O projeto também está na Comissão de Assuntos Constitucionais, desde 15 de novembro de 2010, e também prevê eleições este ano.
No Brasil, tampouco houve definição a respeito da eleição direta para os parlamentares do Mercosul. Aqui parece que as divergências são ainda mais acirradas, pois sequer os representantes brasileiros para esse período foram indicados, depois de um impasse sobre a recondução de membros anteriores. Há informações no site do Parlasul que os representantes indicados tomarão posse em 31 de agosto.
Os projetos que encontrei trazem sistemas eleitorais não contemplados pela legislação brasileira atual. Na Câmara de Deputados, pretendendo eleições diretas em 2010, Carlos Zarattini apresentou uma proposta (PL 5279/09) de eleição em circunscrição nacional e com a adoção do sistema proporcional, com listas fechadas e bloqueadas. Prevê a apresentação de lista de candidatos que corresponda até 150% do número de lugares a preencher e que os “candidatos com domicílio eleitoral nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul ocuparão, em cada lista, vagas na proporção dos lugares que o conjunto de estados que compõe a região ocupa na Câmara dos Deputados”, além da cota de gênero de 30%. Na tramitação deste projeto foi aprovado na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional substitutivo apresentado pelo Dr. Rosinha.
O texto aprovado pela Comissão mantém a proporcionalidade pura com lista fechada em circunscrição nacional, mas aperfeiçoa o cumprimento da exigência de representatividade de gênero e regiões, ao reservar nas listas partidárias, nos dois primeiros conjuntos de cinco nomes, vagas para pelo menos duas mulheres e, necessariamente, a participação de representantes das cinco regiões. Há previsão de financiamento público exclusivo (com recursos equivalentes a 5% do Fundo Partidário) e tem disposições sobre o horário eleitoral gratuito para a disputa. Não admite coligações partidárias. O substitutivo prevê eleições em 2014, simultaneamente às eleições gerais.
No Senado, a proposta apresentada por Lindbergh Farias (PLS 126/2011), que quer que a escolha ocorra conjuntamente com as eleições municipais em 2012, prevê um sistema misto. Vinte e sete parlamentares seriam eleitos pelo voto majoritário, um por Estado e mais o Distrito Federal. Os quarenta e oito restantes seriam eleitos proporcionalmente, em listas fechadas e bloqueadas, e em âmbito estadual. Há previsão de cota de 30% para cada sexo, sem discriminar a ordem, e que determina que “a preordenação das listas de Representantes Federais cabe as direções nacionais dos respectivos partidos e coligações”.  As campanhas serão realizadas sob a responsabilidade dos diretórios nacionais, com recursos exclusivamente públicos. Embora o sistema apresentado traga a representação proporcional, o fato de 15 Estados e do Distrito Federal elegerem apenas um representante por este sistema e sete Estados elegerem dois, e por listas fechadas e bloqueadas, revela que esta proporcionalidade não é efetiva. O projeto encontra-se na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, desde 30 de março de 2011 e depois deve seguir para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Após a descrição dos projetos existentes, passa-se a avaliá-las em face dos princípios constitucionais estruturantes do nosso Direito Eleitoral.
Em termos de igualdade de resultados, exigência das democracias contemporâneas mais ambiciosas, impõe-se a necessária participação das minorias no debate público e nas instituições políticas. Assim também o faz o desenho constitucional da democracia brasileira, a partir do ideal republicano e da exigência de tratamento com igual consideração e respeito de todos os cidadãos. O pluralismo político, fundamento da República brasileira, deve aplicar-se também às eleições do Parlamento do Mercosul. Neste sentido, a adoção do sistema proporcional responde à exigência de igualdade eleitoral e seu afastamento pelo princípio majoritário contraria frontalmente a democracia e o constitucionalismo brasileiros.
A partir desta premissa, vislumbra-se a inconstitucionalidade do projeto apresentado pelo senador Lindbergh Farias. Ainda que o projeto, como foi dito, afirme a adoção de um sistema misto, que combina o princípio majoritário com o princípio proporcional, trata-se, na verdade, de um sistema quase que exclusivamente majoritário em face do número de cadeiras a serem preenchidas (com possível exceção dos Estados que contariam com mais representantes). A negação do princípio proporcional na formação das casas legislativas – qualquer delas – é incompatível com os princípios constitucionais estruturais do Direito Eleitoral, marcadamente o princípio da autenticidade eleitoral (tanto em relação ao voto como quanto à fidedignidade da representação política) e o princípio da necessária participação das minorias. Há que se verificar, ainda, de que forma pretende-se que a simples previsão de cotas de gênero preencha as exigências do pluralismo. A possibilidade de coligações para a eleição – com a adoção de listas fechadas e bloqueadas – permite a união de partidos com ideologias (ao menos nominalmente) muito diversas e pode proporcionar o desvio na vontade do eleitor.
O substitutivo do Dep. Dr. Rosinha ao projeto do Dep. Carlos Zarattini, ao contrário, contempla amplamente o princípio proporcional, com a adoção da circunscrição nacional. Em uma visão desde a ciência política, José Antônio Giusti Tavares afirma que a representação proporcional integral em colégio eleitoral nacional único está no extremo da perfeita proporcionalidade, o que leva à máxima realização do princípio da igualdade eleitoral.
Algumas críticas que se poderia fazer à adoção desta não divisão do território, em relação ao possível monopólio de representantes de uma região e ao elevado custo das campanhas, são afastadas pelo substitutivo, com a previsão de regras para a composição das listas e de financiamento público exclusivo. Não avança, no entanto, em uma divisão mais democrática e mais pluralista do fundo partidário, pois remete à divisão da Lei dos Partidos, que, combinada com a proibição de financiamento privado, tende a fortalecer os grandes partidos e impedir a representação das menores agremiações. Além disso, há que se apontar que a proibição absoluta de contribuições de pessoas físicas – de pessoas físicas, mas não de pessoas jurídicas – desafia uma análise em relação à sua constitucionalidade. Intuo que a faculdade de contribuir para que um partido possa desenvolver seu programa político (em Parlamentos nacionais ou supranacionais) configura uma dimensão de autonomia pessoal que não pode ser negada pelo legislador.
Ambas as propostas determinam a eleição por listas fechadas (e bloqueadas). Embora essa proposta seja coerente com a adoção do financiamento público exclusivo, e no caso do projeto discutido na Câmara, com a circunscrição nacional combinada com regras para a determinação da ordem na lista, a eleição por lista fechada restringe a escolha democrática do eleitor.
Seus defensores apontam o necessário fortalecimento dos partidos políticos, o custo das campanhas e a existência de disputas entre os candidatos da mesma legenda como motivos para a mudança. José Joaquim Gomes Canotilho, ainda, afirma que a votação em lista fechada não ofende o princípio da imediaticidade do voto.
No entanto, as listas fechadas retiram do eleitor, do soberano, a possibilidade de escolher os seus representantes diretamente. Já existe um filtro partidário na formação da relação de representação: somente podem ser candidatos aqueles previamente escolhidos pelos partidos políticos em convenção. Ainda que não haja clara ofensa aos princípios constitucionais, esse modelo não é o que mais se harmoniza com o desenho da democracia brasileira.
A proposta do senador Lindbergh é ainda mais sensível ao reservar aos diretórios nacionais dos partidos políticos a escolha da ordem dos candidatos nas listas, o que favorece de maneira ainda mais acentuada as oligarquias partidárias, marcando uma redução da competição democrática, como acentua Wanderley Guilherme dos Santos.
Em contrapartida, o projeto da Câmara combina a exigência pouco democrática da lista fechada com regras adequadas para a sua composição que, se não asseguram a democracia interna nos partidos, ainda um desafio para a nossa democracia com partidos, ao menos garantem o respeito à adequada representação por gênero e regiões. Interessante a consideração dos dois primeiros conjuntos de cinco posições para determinar o respeito às cotas de gênero e à representatividade das regiões.
Imagino que não seja, por enquanto, o caso de tentarmos evitar a fraude que ocorre em outros sistemas que adotam a lista fechada com cotas de gênero, com a renúncia após a eleição das parlamentares mulheres para que assumam seus cargos correligionários homens. Imagino. No entanto, não custa minimizar o risco dos partidos escolherem puxadores de votos para as primeiras posições que depois se afastam para que ilustres desconhecidos ou indesejados assumam seus postos. Talvez contribuísse para tanto não permitir a apresentação de mais candidatos que o número de cadeiras a ocupar.
Finalmente, há quem defenda a unificação das regras para a eleição dos parlamentares nos países parte do Mercosul. Não me parece adequado. Cada Estado tem uma realidade política e partidária distinta, além de adotarem distintas formas de Estado. Além disso, essa escolha diminuiria o espaço de deliberação democrática e de participação cidadã nesta discussão. Esta participação, indispensável para a legitimidade do sistema e da atuação dos representantes, é o grande desafio.

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