quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Nova Constituição: para quem?

O recém-criado PSD pretende apresentar uma proposta de emenda constitucional visando à eleição de constituintes em 2014. Nada de novo, haja vista a constante sugestão de “mini constituintes” para levar a cabo reformas consideradas “essenciais”, como a trabalhista, a tributária e a política. Ocorre que não existe mínima convergência sobre em que sentido devem ser constituídos os novos modelos. Nessa seara, duas propostas de emenda tramitam hoje no Senado: uma do PMDB/SE e a outra do DEM/GO. Na Câmara, uma proposição tramita desde 1997, apresentada pelo PDT/RJ, e que defende um rito diferenciado para a mudança dos artigos constitucionais referentes aos direitos e partidos políticos, às competências dos entes federados e ao sistema tributário. A do PSDB/SP (PEC 447/2005) também propõe uma revisão, todavia, com algumas limitações a temas como a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação de poderes e os direitos e as garantias individuais. A PEC 157/2003, apresentada pelo então PFL/SP, fala em Assembleia de Revisão Constitucional e ataca o texto atual e seu alto nível de detalhamento. No fundo, deseja-se adaptar a ordem constitucional aos planos dos governantes do momento (ou de quem quer lhe tomar o lugar), ao sabor das maiorias eventuais e das palavras de ordem mais populares.
Todavia, isso contraria frontalmente a noção de constitucionalismo a duras penas conquistada no século 20 e que, inspirada por uma preocupação de limitação do poder e de garantia de direitos fundamentais, presume sua permanência, repudiando sua adequação cotidiana às vontades ainda que democráticas. Isso pode parecer estranho no sistema brasileiro, em que a Constituição foi emendada mais de 70 vezes. Ocorre que o núcleo da Constituição permanece intacto, o que tem permitido, mais recentemente, fortes avanços sociais mediante uma atuação significativa do Estado brasileiro como propulsor do desenvolvimento.
As emendas têm se mostrado mais fáceis do que se imaginava originalmente, permitindo mudanças em temáticas conjunturais. Ademais, o Judiciário tem promovido mutações em alguns dispositivos. Assim, propor uma revisão estrutural é defender o amesquinhamento da Carta Magna. Poucas vezes os nossos representantes no Legislativo estiveram tão deslegitimados para levar a efeito a ideia. Uma Constituinte seria uma farsa completamente deslocada em face da absoluta ausência de um fenômeno social justificador de tal reestruturação.
É necessário recordar o contexto em que foi escrita a Constituição de 1988. O final da ditadura militar, a rejeição da proposta de eleição direta para Presidente, o anseio por uma ordem democrática e pela volta da liberdade impulsionaram a sociedade na construção de uma nova ordem. E a sociedade efetivamente se envolveu nesse projeto. Movimentos sociais discutiram o que deveria estar no texto. Juristas apresentaram suas propostas, assim como os “notáveis”. Mas também o povo, por meio de 72.719 formulários enviados aos constituintes, 11.989 sugestões apresentadas diretamente às comissões da Assembleia Nacional Constituinte e 122 emendas populares com mais de 12 milhões de assinaturas. Esse envolvimento dificilmente se repetiria hoje.
Na atual conjuntura, uma nova Constituição nada mais seria do que um golpe institucional apto a, sob a justificativa de concretizar os anseios do povo e da modernização, atender: 1) a desejos majoritários contrários a direitos fundamentais; 2) a interesses privados travestidos de públicos; 3) a necessidades oportunistas de setores da elite dominante; 4) a retrocessos advindos de concepções unilaterais moralizantes.
Quem mais ganharia com uma nova Constituinte seriam os partidos “sem alma”, prontos para dar apoio a quem lhes “der a maior oferta”. Uma nova Constituição, mais do que um processo político, implicaria a criação de um verdadeiro “mercado”. A Constituição de 1988 certamente foi feita para o povo, ainda que sem ter representantes eleitos exclusivamente para a tarefa. Defender nova Constituinte implicaria uma Constituição pretensamente feita pelo povo, porém certamente contra ele.
Eneida Desiree Salgado, advogada, é professora de Direito Constitucional e Eleitoral da UFPR e do Curso de Mestrado da UniBrasil. Emerson Gabardo, advogado, é professor de Direito Administrativo da UFPR e coordenador adjunto do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da PUCPR.

Nenhum comentário: