sábado, 25 de setembro de 2010

Algumas notas sobre a Lei Complementar n. 135/2010




Depois de algumas horas de reflexão, resolvi enfrentar a decisão (?) do Supremo Tribunal Federal em relação à candidatura de Joaquim Roriz. Para isso, acabei indo longe... 

Antes de tratar do tema, algumas premissas devem ser evidenciadas.


As restrições aos direitos fundamentais devem, sempre, ser interpretadas restritivamente e precisam estar em consonância com os demais direitos fundamentais e com os princípios constitucionais.
Se temos como certo que a elegibilidade é a regra e a inelegibilidade é a exceção (em virtude da configuração dos direitos políticos, de votar e de ser votado, como direitos fundamentais), os limites ao direito de concorrer a um cargo eletivo deverão, sempre, encontrar amparo no conjunto da estrutura constitucional, e respeitar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
O constituinte fez determinados recortes ao direito de concorrer a um cargo eletivo. Além do pleno gozo dos direitos políticos, requisito que tangencia a obviedade, escolheu a filiação partidária, o domicílio eleitoral na circunscrição, a cidadania brasileira, a alfabetização, e idade mínima conforme o cargo. Embora se possam apresentar críticas em relação à filiação partidária como exigência para todos os cargos, inclusive os majoritários, e possam-se colocar ressalvas – que se aproximam de uma visão elitista da democracia – em face da não distinção de graus de educação formal em relação aos diversos cargos em disputa, todos essas condições de elegibilidade são fruto do desenho constitucional dos direitos políticos.
Outros limites derivam do texto constitucional. A inelegibilidade por parentesco, que busca evitar que uma família se perpetue no poder, a impossibilidade, constante em todos os textos constitucionais, inclusive no texto original da Constituição de 1988, de um segundo mandato no poder executivo, e a necessidade de afastamento para que o chefe do Poder Executivo concorra a outro cargo.
A Emenda Constitucional n. 16, de tramitação confusa e aprovação suspeita, possibilita a reeleição para um mandato subseqüente do chefe do Poder Executivo e passa a valer aproveitando os então ocupantes de cargos. Além disso, e juridicamente ainda mais relevante, quebra todo um sistema de proteção constitucional e infraconstitucional contra o uso do poder político na disputa eleitoral que começou a ser construído ainda no Império.
A Constituição de 1988, em relação aos direitos políticos, ainda traz uma reserva de lei complementar. Em seu texto original, o parágrafo 9º do artigo 14 dispunha que: “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
Em obediência ao comando constitucional e em substituição à Lei Complementar n. 5 de 1970, o Parlamento edita a Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990. A anterior Lei de Inelegibilidades, editada dois anos após o Ato Institucional n. 5, trazia algumas hipóteses curiosas. Tornava inelegíveis os atingidos pelos atos institucionais e, se cassados, também os seus cônjuges; os que militavam em partidos políticos com registro cassado ou em associações dissolvidas; os que tivessem atentado, em detrimento do regime democrático, contra os direitos individuais concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade; os que tivessem sido condenados ou respondessem a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio; e os que apresentassem argüição de inelegibilidade ou impugnação de registro feitas por motivo falso ou graciosamente, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados.
A Lei Complementar n. 64/90, em vigor com algumas modificações, traz outras restrições ao direito de concorrer a eleições, impondo prazos para o afastamento de cargos cujo exercício pelo candidato poderia levar a um desequilíbrio no pleito – o que se chama em direito eleitoral de desincompatibilização –, e também algumas hipóteses de inelegibilidade como sanção.
Essas inelegibilidades, denominadas de inelegibilidades cominadas pois impõem uma restrição derivada de uma conduta desvalorada, estão previstas nas alíneas “b”a “h” da referida lei, em seu texto original.
Na normativa complementar de 1990, há a previsão de penas de inelegibilidade que variam de três a cinco anos, para a perda de mandato por quebra de decoro, para a cassação de mandato de governador e prefeito, para a condenação em representação na Justiça Eleitoral, para a condenação criminal pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, para a indignidade do e incompatibilidade com o oficialato, para a rejeição de contas dos administradores, para a condenação por abuso de poder econômico ou político e os diretores de estabelecimentos de crédito, financiamento ou seguro, que tenham sido ou estejam sendo objeto de processo de liquidação judicial ou extrajudicial, enquanto não forem exonerados de qualquer responsabilidade (esta última hipótese, sem prazo definido, com redação idêntica à alínea “o” do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar n. 5/70).
A Lei Complementar n. 64 foi publicada em 18 de maio de 1990. Era ano de eleições estaduais – em 3 de outubro seriam eleitos os deputados federais e estaduais e os governadores. Surgiu a dúvida se, em face do disposto no artigo 16 da Constituição, que impõe a anterioridade eleitoral – “A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”, em sua redação original – a nova lei de inelegibilidades alcançava os eventuais candidatos àquele pleito.
O Tribunal Superior Eleitoral, em decisão de 31 de maio de 1990, por unanimidade, estabeleceu a aplicação imediata da lei, por se tratar de exigência constitucional, “sem configurar alteração do processo eleitoral”. Do curto voto do relator, Ministro Octavio Gallotti, extrai-se que “[o] estabelecimento, por lei complementar, de outros casos de inelegibilidade, além dos diretamente previstos na Constituição, é exigido pelo art. 14, § 9º, desta e não configura alteração do processo eleitoral, vedada pelo art. 16 da mesma Carta”. Essa posição foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 1992: a posição majoritária fez prevalecer a tese “de que, cuidando-se de diploma exigido pelo art. 14, § 9º, da Carta Magna, para complementar o regime constitucional de inelegibilidades, à sua vigência imediata não se pode opor o art. 16 da mesma Constituição”.
Aqui começa a se delinear o discutível entendimento do Poder Judiciário brasileiro sobre o conteúdo do “processo eleitoral”. Por decisões posteriores, fica estabelecido que não se compreendem no artigo 16 as mudanças na apuração dos votos, nas regras de propaganda eleitoral, e a proibição da livre coligação partidária (embora sua afirmação se submeta). Portanto nem questões de convenções partidárias, nem a delimitação de quem pode ser candidato, nem regras da campanha eleitoral, nem apuração de votos. Fica complexo vislumbrar o que resta para a anterioridade eleitoral.
Ressalte-se que a anterioridade eleitoral é essencial para a lisura do processo democrático. Estabelecer as regras do jogo antes da “convocação dos jogadores” é um elemento inafastável para se garantir a ausência de uma normativa casuística e tendenciosa. Parece que a interpretação mais adequada seria compreender o processo eleitoral iniciando com o maior prazo para desincompatibilização, quando já se começam a discutir quem serão os candidatos. Assim, todas as regras jurídicas que tratem de incompatibilidades, inelegibilidades, convenções partidárias, propaganda eleitoral, arrecadação e aplicação de recursos, prestação de contas, votação e apuração, proclamação dos eleitos e diplomação só podem ser alteradas um ano antes da eleição, sob pena de se aniquilar a previsão constitucional do artigo 16.
Essa digressão é necessária para analisar a Lei Complementar n. 135/2010 e a (não) decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a sua aplicabilidade.
Voltemos ao parágrafo 9º do artigo 14. Após a elaboração da Lei Complementar n. 64/90, o dispositivo foi alterado no bojo da revisão constitucional. A nova redação, trazida pela Emenda Constitucional de Revisão n. 4/94, evidencia mais bens jurídicos a serem protegidos pela legislação complementar: a probidade administrativa e a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato.
Antes do Poder Legislativo agregar esse conteúdo à lei complementar, o Poder Judiciário ameaçou fazê-lo. Em 2008, os Tribunais Regionais Eleitorais indeferiram pedidos de registro de candidatos com condenações criminais ainda sem trânsito em julgado ou que respondessem a ações de improbidade administrativa. Provocado, em resposta à consulta n. 1621, o Tribunal Superior Eleitoral, por pequena maioria de votos, estabeleceu que “sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, nenhum pré-candidato pode ter seu registro de candidatura recusado pela Justiça Eleitoral”.
O relator da consulta, Ministro Ari Pargendler, aduziu que as inelegibilidades são matérias reservadas à lei complementar, segundo expresso comando constitucional. O Ministro Eros Grau, em voto-vista, afirmou expressamente que “[a] suposição de que o Poder Judiciário possa, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida pregressa de candidato para o fim de definir situações de inelegibilidade importaria a substituição da presunção de não culpabilidade consagrada no art. 5º, LVII da Constituição (...) por uma presunção de culpabilidade contemplada em lugar nenhum da Constituição”. Ressaltou, ainda, que “o Poder Judiciário não está autorizado a substituir a ética da legalidade por qualquer outra”.
O Ministro Carlos Ayres Britto defendeu a aplicação do método sistemático de interpretação do Direito, afirmando a distinção em relação ao indivíduo entre os direitos individuais e sociais e os direitos políticos, pois estes últimos servem aos princípios da soberania popular e da democracia representativa e são vinculados a valores e não a pessoas. Afirmou expressamente “a exigência de uma honrada vida pessoal pregressa como inafastável condição de elegibilidade” implícita na Constituição (como a escolha do candidato em convenção partidária), e não como hipótese de inelegibilidade, o que estaria reservado à lei complementar. Em debate com o Ministro Eros Grau, o Ministro Carlos Ayres Britto sublinhou que a presunção de não culpabilidade não se aplica plenamente aos direitos políticos.
Os Ministros Joaquim Barbosa e Félix Fischer acompanharam o voto do Ministro Carlos Ayres Britto, estabelecendo como critério a condenação nas instâncias ordinárias. Em intenso debate, o Ministro Carlos Ayres Britto afirmou que em relação aos direitos políticos se inverte a prioridade em direção ao princípio da precaução.
O Ministro Caputo Bastos votou com o relator, afirmando o risco de superposição de competências entre os poderes e a impossibilidade de o Poder Judiciário substituir o legislador. Para o Ministro Marcelo Ribeiro, o entendimento de uma nova condição de elegibilidade levaria à criação, por construção jurisprudencial, de restrição a direito. Assim, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu pela impossibilidade de afastamento pela Justiça Eleitoral de candidato sem condenação transitada em julgado.
O Supremo Tribunal Federal foi provocado sobre a questão na ação de descumprimento de preceito fundamental proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros. Os proponentes afirmavam a desconformidade da exigência de trânsito em julgado para as inelegibilidades previstas na Lei Complementar n. 64/90, bem como da possibilidade de suspensão da inelegibilidade por rejeição de contas quando a decisão estiver sob a apreciação do Poder Judiciário, a partir da nova redação do parágrafo 9º do artigo 14. Em decisão de 06 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos (vencidos os Ministros Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa), pelo afastamento da pretensão em face da compreensão de que a garantia da presunção da inocência extrapola o âmbito penal e pela impossibilidade de construção jurisprudencial em matéria de inelegibilidade, reservada à lei complementar.
A partir de um discurso de moralidade cada vez mais intenso, começou a surgir a proposta de uma lei complementar que ampliasse as inelegibilidades, contemplando a proteção de todos os bens jurídicos previstos na Constituição. Com uma polêmica coleta de assinaturas, que, segundo as associações que a promoveram, alcançou a adesão de mais de 1,3 milhão de eleitores, o projeto foi apresentado à Câmara dos Deputados em 29 de setembro de 2009, portanto a três dias do prazo imposto pelo artigo 16 da Constituição.
Do projeto não foi adiante a proposta de inelegibilidade para os parlamentares cuja conduta fosse considerada incompatível com o decoro. Foram agregadas no processo legislativo as hipóteses de inelegibilidade por condenação por improbidade que importe em lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, por exclusão do exercício da profissão por decisão sancionatória do órgão profissional competente em decorrência de infração ético-profissional, por condenação por fraude em dissolução de vínculo conjugal ou união estável para evitar a inelegibilidade, por demissão do serviço público, por doações eleitorais ilegais (alcançando pessoas físicas e dirigentes de pessoas jurídicas) e por aposentadoria compulsória ou pedido de exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar referente a magistrados e membros do Ministério Público. Todas as inelegibilidades têm o prazo de oito anos.
O que salta aos olhos no texto da Lei Complementar n. 135/2010, no entanto, é a inexigência de trânsito em julgado das decisões condenatórias. A norma refere-se à imposição de inelegibilidade por decisão de órgão judicial colegiado ou, em alguns casos, até mesmo sem a apreciação do Poder Judiciário (como a exclusão do exercício da profissão). Neste ponto, o projeto apresentado era ainda mais severo, impondo a inelegibilidade em decorrência do cometimento dos crimes referidos por condenação em primeira ou única instância ou pelo recebimento da denúncia por órgão judicial colegiado e por representação julgada procedente.
Agrege-se a isto a existência de vício formal no processo legislativo, com a mudança de tempos verbais por emenda no Senado, que funcionou como casa revisora. Assim, com a alteração do alcance da aplicabilidade das normas – o que gera uma substancial modificação no projeto – o texto deveria voltar à casa iniciadora, segundo o disposto no parágrafo único do artigo 65 da Constituição. Não voltou. E acabou tornando-se lei em 4 de junho de 2010, a menos de uma semana do início das convenções partidárias para a escolha de candidatos e deliberação sobre coligações e dois meses depois do prazo máximo para desincompatibilização.
Em 10 de junho de 2010 – dia do início do prazo para as convenções partidárias, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu pela aplicação da lei para as eleições deste ano, a partir de consulta formulada pelo senador Arthur Virgilio. Na ocasião, o representante do Ministério Público defendeu a aplicabilidade imediata da lei, pois o processo eleitoral ainda não havia sido iniciado e “na ocasião do pedido de registro as regras do jogo estarão claras e os candidatos deverão ser pessoas idôneas para ocuparem os cargos eletivos”. O relator, Ministro Hamilton Carvalhido, votou pela aplicabilidade, assim como os ministros Arnaldo Versiani, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Aldir Passarinho Junior, Marcelo Ribeiro e Ricardo Lewandowski. Apenas o ministro Marco Aurélio defendeu que a lei somente valeria para as eleições de 2012, pois “o processo eleitoral já está em pleno curso”.
Em decisão de 17 de junho, o Tribunal Superior Eleitoral afirmou a possibilidade de retroação das normas da nova lei para agravar a pena de inelegibilidade aplicada na forma da legislação anterior, respondendo a uma consulta formulada pelo deputado Ilderlei Cordeiro. O relator, Ministro Arnaldo Versiani, afirmou em seu voto que inelegibilidade não constitui pena, portanto não é possível dizer que lei eleitoral, que trata de inelegibilidades, não pode retroagir por supostamente agravar uma situação anterior à sua vigência. “Não tem caráter de norma penal. É uma lei para resguardar o interesse público”. Além disso, o relator destacou que as condições de elegibilidade de um candidato, e se ele é inelegível por alguma razão, são verificadas pela Justiça Eleitoral no momento em que ocorre o pedido de registro de sua candidatura. Esse entendimento foi acompanhado integralmente pelos ministros Ricardo Lewandowski, Aldir Passarinho Junior, Cármen Lúcia e Hamilton Carvalhido.
Em 12 de agosto de 2010, o Tribunal Superior Eleitoral, pelo Ministro Arnaldo Versiani, decidiu que as alterações promovidas pela Lei Complementar n. 135/2010 deveriam ser interpretadas restritivamente e afastou a imposição de inelegibilidade por condenação em ação de impugnação de mandato eletivo, em virtude de que a lei refere-se apenas a representação.
Em 25 de agosto, a maioria do Tribunal Superior Eleitoral decidiu que a aplicação das novas regras às eleições de 2010 não alteram o processo eleitoral. Além disso, afirmou aplicação da nova legislação para regular condutas praticadas antes da sua vigência. Ficam vencidos os ministros Marcelo Ribeiro e Marco Aurélio. O presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowski, considerou que a Lei da Ficha Limpa não promoveu alteração no processo eleitoral que rompesse com as regras atuais, mas apenas que foi criado um novo regramento linear e isonômico que levou em conta a vida pregressa dos candidatos, de forma a procurar preservar a moralidade das eleições no que chamou de princípio da prevenção. Segundo a ministra Cármen Lúcia, “não se está diante de aplicação de punição pela prática de ilícito eleitoral, mas de delimitação no tempo de uma consequência inerente ao reconhecimento judicial de que o candidato, de alguma forma, não cumpre os requisitos necessários para se tê-lo como elegível”.
Em 31 de agosto, analisando o recurso do candidato Joaquim Roriz, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que a inelegibilidade para quem renuncia ao cargo para escapar de eventual cassação, prevista pela Lei Complementar n. 135/2010, aplica-se a quem renunciou antes da vigência da lei. Em 1º de setembro, afastou-se a elegibilidade de Jader Barbalho, que renunciou em 2001 ao cargo de senador e foi eleito deputado federal em 2002 e 2006. No dia 06, decidiu-se pela inelegibilidade de Janete Capiberibe, em razão de condenação por compra de votos em 2002. Paulo Rocha foi considerado inelegível por renúncia ao cargo de deputado federal pelo Pará em 2005, segundo decisão do TSE em 13 de setembro. No dia seguinte, Fábio Tokarski teve sua candidatura à Câmara dos Deputados por Goiás indeferida em face de condenação por captação ou gastos ilícitos de recursos durante a campanha eleitoral de 2006 (a decisão condenatória transitou em julgado em fevereiro deste ano, antes da entrada em vigor do dispositivo que previa a inelegibilidade).
Em 22 de setembro, o Supremo Tribunal Federal começou a analisar o recurso extraordinário que Joaquim Roriz apresentou contra a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que aplicou a Lei Complementar n. 135/2010 e o considerou inelegível. Como os votos ainda não estão disponíveis, com exceção da manifestação do Ministro Dias Toffoli, as declarações aqui trazidas foram retiradas da página de notícias do STF.
O Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, sustentou que inelegibilidade não é pena e, por isso, não cabe a aplicação do princípio da irretroatividade da lei: a inelegibilidade constitui restrição temporária à possibilidade de candidatar-se a cargo eletivo; afirmou que não se aplica o princípio da anterioridade, pois o propósito legislador é dar cumprimento à previsão constitucional; finalmente, aduziu que o princípio da presunção de inocência se refere à proteção na esfera penal.
Em seu voto, o Ministro relator Carlos Ayres Britto afirma que a lei “já nasceu legitimada e pronta para ser aplicada” e que acabou com o domínio do poder por políticos “que davam as costas à moralidade”. Afasta a incidência do artigo 16, afirmando que a lei não provoca surpresa no pleito, mas que vem 16 anos após a sua previsão constitucional e antes das convenções partidárias.
Após o voto do relator, e por provocação do presidente Ministro Cezar Peluso, há um debate sobre a inconstitucionalidade formal da lei em face das modificações promovidas pela casa revisora. O Ministro Dias Toffoli pediu vistas e o julgamento foi interrompido.
Em seu voto, o Ministro Dias Toffoli sustentou a aplicação do artigo 16 da Constituição, “pela singela razão de afetar, alterar, interferir, modificar e perturbar o processo eleitoral em curso”. O que se busca, para o ministro, é a previsibilidade das regras eleitorais.
A ministra Carmen Lúcia acompanhou os argumentos do relator. Ressaltou que a lei passou a vigorar em 7 de junho passado, portanto, antes que se iniciasse o prazo para a realização das convenções partidárias que escolhem os candidatos. Para ela, a lei, que veio com 16 anos de atraso, atende a um anseio da população brasileira por moralidade e probidade administrativa na vida pública. Afirma, ainda, que “O princípio constitucional prevalecente, portanto, é o da proteção ético-jurídica do processo eleitoral, sobrepondo-se o direito da sociedade a uma eleição moralizada, proba, impessoal e legal ao voluntarismo daquele que se pretende por ao crivo do eleitor. O objetivo da norma constitucional, (...), é assegurar a proteção ética do processo eleitoral, garantindo-se à sociedade o direito de votar em que o sistema estabeleça as condições ético-jurídicas de exercer o mandato que lhe venha a ser conferido, tudo nos termos do que a lei estabelecer antes de ser conferida a cada um a condição de candidato”.
O ministro Joaquim Barbosa também negou provimento ao recurso, afirmando que a norma veio trazer a moralização da vida pública e que a sua origem na mobilização popular “já deve constituir um norte interpretativo importante a guiar a análise do presente recurso”. Ressaltou que “os direitos políticos têm uma compreensão que ultrapassa a esfera puramente individual e se irradiam por todo o sistema representativo e, por via de consequência, por todo o estado democrático de direito”. Para ele, “é a própria democracia que se vê diminuída e deslegitimada quando cidadãos ímprobos ou envolvidos em atividades eletivas, se tornam representantes do povo”. Aduz que os dispositivos da lei não interferem no processo eleitoral e afasta a aplicação do artigo 16, pois a norma “tem objetivo moralizador, tem fundamento constitucional e, no que tange às causas de inelegibilidade, não desestabiliza o processo eleitoral em curso e não fere o princípio da isonomia e da segurança jurídica, tampouco tem conotação casuística, pois incidirá sobre todos os pleiteantes a cargo eleitoral de forma igual”.
O ministro Ricardo Lewandowski acompanhou o relator, sublinhando que a lei não traz “alteração do processo eleitoral, pois não se registrou qualquer casuísmo ou rompimento da chamada paridade de armas que pudesse acarretar alguma deformação no processo eleitoral”. Em defesa da aplicação da nova lei a condutas anteriores, aduziu que a norma não tem caráter penal nem punitivo, e sim o de proteção da coletividade e a preservação dos valores republicanos – “O interesse público, neste caso, se sobrepõe aos interesses exclusivamente individuais”.
Para o Ministro Gilmar Mendes, uma lei que altera ou cria hipóteses de inelegibilidades deve, obrigatoriamente, se submeter à anterioridade eleitoral prevista no artigo 16. Segundo ele, tal princípio é cláusula pétrea e uma garantia fundamental do cidadão-eleitor, do cidadão-candidato e dos partidos políticos, e não pode ser desprezado em nome da pressão popular. O ministrou ressaltou que esse não foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação à Lei Complementar n. 64/90 porque então havia uma lacuna normativa. Ressaltou ainda a necessidade de respeito à Constituição, mesmo por uma lei de iniciativa popular.
A discussão sobre o vício formal de inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 135/2010 não cabe neste caso, afirmou a Ministra Ellen Gracie, pois a alínea a que a questão se submete não sofreu alteração no Senado. Afastou a incidência do artigo 16, “uma vez que aquele diploma tratou de matéria que não se volta ao processo eleitoral, mas a sua exclusiva diretriz constitucional que é o regime de inelegibilidades estabelecidos no artigo 14”.
O Ministro Marco Aurélio votou pelo provimento do recurso, fundamentando-se nos princípios da irretroatividade da lei, da anualidade da lei eleitoral, da presunção da inocência e do direito adquirido. Para o ministro, não se pode desprezar os princípios que são a mola mestra do estado democrático de direito, entre eles a irretroatividade da lei. Em sua análise, a alteração feita pelo Senado Federal no texto original da Câmara dos Deputados em relação ao tempo verbal – de “que tenham sido” para “forem” condenados – teve o propósito justamente de observar a irretroatividade, ou seja, de excluir situações anteriores.
De acordo com o ministro Celso de Mello, a Lei Complementar n. 135/2010 “foi alcançada pela incidência restritiva do postulado da anterioridade eleitoral, eis que o mencionado diploma legislativo, entrou em vigor na data de sua publicação (7/06/2010) e em plena harmonia com o que diz o artigo 16”. “A vigência pode ser imediata, a eficácia é que não o é”. Quanto à possibilidade de a inelegibilidade constituir pena, o ministro considerou que, em situações como a prevista na alínea ‘k’, a inelegibilidade qualifica-se como sanção, não como sanção criminal, mas configurando a chamada “inelegibilidade cominada”, “não obstante o caráter plenamente lícito do ato [renúncia ao mandato] que foi tipificado como causa geradora dessa nova modalidade de privação da cidadania passiva”. Segundo ele, a inelegibilidade cominada apresenta conteúdo sancionatório, diferentemente da inelegibilidade inata (comum a todos os brasileiros que não têm registro de candidatura por não apresentarem pressupostos constitucionais ou legais para tê-lo). Ao final, o ministro avaliou que mesmo que não se considere a inelegibilidade como sanção, “é fato irrecusável que ela traduz uma gravíssima limitação ao direito fundamental de participação política, pois impõe severa restrição à capacidade eleitoral passiva do cidadão, o que o priva e o destitui do direito de participação no processo político e também nos órgãos governamentais”.
Último a votar, o Ministro Cezar Peluso afirmou a inconstitucionalidade formal da Lei Complementar n. 135/2010, a sua necessária submissão ao artigo 16 da Constituição e a irretroatividade dos seus dispositivos. Para o ministro, a lei de inelegibilidades tem “maior capacidade de atingir a correlação de forças eleitorais, porque altera o elemento mais delicado do processo eleitoral, que é o quadro da competição”.
Com o empate, iniciou-se um debate sobre a proclamação do resultado do julgamento. Os ministros fizeram diversas referências a dispositivos regimentais. Houve, inclusive a sugestão de que a decisão fosse dada pelo ministro que ocupará a vaga deixada por Eros Grau, ainda não escolhido, sabatinado e nomeado, em evidente ofensa ao princípio do juiz natural – o juiz será posterior à causa. Decidiram, por fim, não decidir. Joaquim Roriz renunciou ao cargo, mas o Supremo Tribunal Federal logo terá que enfrentar novos recursos.
No entanto, até lá, a eleição possivelmente já tenha passado. E todo o processo eleitoral restará maculado com a incerteza jurídica em relação a quem pode ser candidato. As sucessivas decisões judiciais, em flagrante contrariedade à Constituição, foram alterando as condições de disputa, ao decidirem aplicar uma lei chapadamente inconstitucional em uma suposta homenagem à moralidade e à soberania popular.
A Lei Complementar n. 135/2010 traz consigo uma série de vícios. O vício formal de não observância do processo legislativo constitucionalmente determinado é o menor deles. A lei traz severas restrições ao direito fundamental de elegibilidade, sem exigir uma apreciação judicial definitiva (e por vezes sem exigir sequer manifestação judicial) para sua aplicação. Além disso, os prazos de inelegibilidade são desarrazoados.
Certamente uma lei que diminua o espectro de possíveis candidatos altera o processo eleitoral. Logo, impõe-se a aplicação do artigo 16 da Constituição. Tal dispositivo, é bom que se ressalte, não traz consigo nenhuma explicação a respeito de suas finalidades ou de suas intenções. Afirma, apenas, que a lei que alterar o processo eleitoral só se aplica à eleição que ocorra depois de um ano de sua entrada em vigor. Apenas isso. O demais é psicanálise do legislador.
Ainda mais grave, no entanto, é aceitar que uma norma que restringe direitos políticos, seja ou não sanção – embora as modificações realizadas reflitam todas hipóteses de inelegibilidade cominada e, portanto, derivadas de condutas juridicamente desvaloradas – possa ser aplicada a condutas anteriores à sua vigência. Ora, o Direito não surpreender os cidadãos. A previsibilidade dos efeitos de suas condutas é garantida pela mais tênue leitura do princípio da legalidade. Não é admissível em um Estado de Direito, sobretudo se for adjetivado como democrático, que sejam agregados efeitos negativos a uma ação que, quando realizada, não possuía o condão de provocar tais conseqüências. Trata-se, nitidamente, de uma restrição (para não entrar na polêmica quanto ao caráter claramente punitivo de tais inelegibilidades), e uma restrição posterior aos fatos.
Finalmente, cabe afastar os argumentos menos jurídicos das manifestações favoráveis à lei e à sua aplicação imediata.
A moralidade não pode ser razão para se afastarem outros princípios e normas constitucionais. A substituição de argumentos jurídicos por argumentos éticos leva ao enfraquecimento do ordenamento jurídico, com a flexibilização de suas garantias, e se aproxima perigosamente de um “Estado Ético” de cunho fortemente totalitário. A moralidade jurídica que informa uma sociedade não é a moralidade segundo a leitura dos juízes constitucionais – é a moralidade que se traduz no conjunto de princípios jurídicos plasmados na Constituição. Entre eles está a irretroatividade da lei, o juiz natural, a legalidade, a previsão do devido processo legislativo e a anterioridade eleitoral. Tampouco é admissível que os direitos individuais sejam sacrificados no altar da República.
Uma lei de (pretensa) iniciativa popular não a blinda contra inconstitucionalidades. Caso contrário, não há constitucionalismo, não há jurisdição constitucional. Há uma constante redefinição dos pilares normativos da sociedade, ao sabor das maiorias eventuais, muitas vezes provocadas artificialmente por discursos recheados de falso moralismo. O princípio da supremacia da Constituição, que tanto demorou a incorporar-se na mentalidade jurídica brasileira, não pode se curvar a uma fictícia manifestação popular. Além disso, se a sociedade não quer representantes não-cândidos não precisa se valer de acrobacias jurídicas e argumentativas – basta negar-lhe o voto.

3 comentários:

Vitor Hugo Fogaça disse...

Professora, achei o texto extremamente esclarecedor e consegue demonstrar claramente sua posição, que compartilho, acerca dos vicios da lei complementar 135/2010.
Certamente teremos, a partir desse escrito, um excelente minicurso, que virá em um ótimo momento por sinal.
Peço, desde já, a autorização para publicar o texto também em meu blog.

Abraço.

Anônimo disse...

O texto é acadêmicamente esclarecedor. Mas, embora a sra afirme que uma lei de iniciativa popular não (a) blinde contra inconstitucionalidades.....a meu ver deveria ter omitido seu juízo de valor afirmando que a lei é "pretensamente" uma iniciativa popular. Seu texto cuidadosamente fundamentado em nossas leis, medidas, etc não deveria indiretamente questionar (ou mesmo afirmar) a qualidade da inciativa uma vez que a mesma reflete sim um pleito da sociedade brasileira. Diversas pesquisas de opinião atestam que uma das maiores preocupações da sociedade brasileira é a corrupção, associada a desvio de dinheiro público, bandidagem, etc. Ademais, apesar do perfeito embasamento dos argumentos jurídicos, os juízes têm muitas vezes direcionado os processos e tomado decisões com base no bom senso e avanço da sociedade brasileira. A meu ver, a Lei da Ficha Limpa assim deveria ser encarada e por conseguinte, aprovada. Se as leis, a justiça brasileira e seu corporativismo permitissem que pocessos e julgamentos fossem mais céleres, de fato a Lei da Ficha Limpa poderia ser analisada apenas levando-se em consideração o ordenamento jurídico.

Desiree disse...

Obrigada pelos comentários.
Sustento que a lei é pretensamente de iniciativa popular porque seu conteúdo não é oriundo de debates públicos e muito menos foi discutido com a população. Ainda, tecnicamente, a lei não é de iniciativa popular porque tramita com a assinatura de diversos parlamentares. Ser contra a corrupção - como acredito que todos somos - não significa concordar com a tutela na escolha dos nossos representantes e nem com a funcionalização das liberdades.