domingo, 10 de outubro de 2010

Preconceito e constituição, por Vera Karam de Chueiri

Levando a constituição a sério.

O segundo turno para eleição presidencial e, sobretudo, o nível preconceituoso de mensagens que circulam pela internet me provocou a escrever esse texto. Não se trata de uma aula de direito constitucional, pois não teria (como não tenho) tal pretensão e também, o processo de ensino-aprendizagem é algo que extrapola a educação formal e parte dele é resultado das nossas experiências cotidianas. Entretanto, na engrenagem que conheço, teórica e praticamente e que se refere à constituição do Brasil, permito-me falar nos limites desta notícia. A primeira pergunta que devemos fazer é o que uma constituição constitui? Parece redundante, mas não é. Normalmente achamos que a constituição de um país é apenas um texto, entretanto não é. Ela se expressa através de um texto, mas ela é norma e, mais do que isso, um tipo muito especial de norma que fundamenta nossa forma e nosso conteúdo como comunidade política. E como ela fundamenta? No caso brasileiro, dizendo de saída que somos republicanos, federativos e democráticos. E o que tais normas significam? Grosso modo, que nossas razões em comunidade devem ser públicas e não privadas fruto sempre de processos de deliberação que incluam cada vez mais pessoas e vozes, ainda que o custo disso seja, para aqueles que não são republicanos, democráticos e federalistas, um exercício hercúleo de tolerância do outro, este que nunca ou pouco nestes 119 anos de república puderam ser ouvidos.
O que me parece neste segundo turno de eleições presidenciais que está em jogo é o ouvir da voz do outro, ou seja, mais do que a questão política-ideológica, o que me assusta e enoja ao mesmo tempo é o preconceito e a voracidade dos que o professam, sem qualquer constrangimento. Recebi (e continuo recebendo) pela internet mensagens que para dizer o mínimo são anti-republicanas e anti-democráticas, pois significadas por um alto nível de preconceito, sobretudo em relação aos pobres. E, por que isso é, com certeza, o que mais faz mal a uma república, a uma democracia e, assim, ao que nos constitui como comunidade política, sem falar do quanto faz mal à nossa própria constituição como pessoas? Porque o preconceito é a medida dos ódios, do não reconhecimento do outro, da outra face que diferente da nossa deve, por isso mesmo, ser respeitada.
O próprio Cristo lutou contra o preconceito. Paulo, seu apóstolo, era também o homem, igual aos seus semelhantes, mas, ao mesmo tempo, diferente de todos, chamado que foi. Eis a vocação Paulínia, o chamamento, o qual remete ao evento messiânico, isto que interrompe, provoca crise, transforma e por isso gera possibilidades. Conforme Paulo, a vocação messiânica se aplica a qualquer condição (circuncidado ou não, escravo ou homem livre, mulher ou homem) Por isso, ser messiânico ou viver no messias significa antes a expropriação de toda propriedade jurídico-fática e viver messianicamente significa usar e não possuir. Por isso, em uma política messiânica ou na comunidade que virá não cabe qualquer forma de preconceito, especialmente contra os pobres.
E se a política não for essa promessa ela não teria sentido algum. Em nossa história temos uma experiência recentíssima de comunidade e mesmo assim há muito por melhorar. Isto, pois, a participação cidadã dos mais pobres é tão recente quanto a nossa constituição, isto é, apenas 21 anos. Isso, inclusive, porque a constituição, na sua parte final, ao trazer as normas de políticas públicas reafirma a necessidade da erradicação da pobreza, este que é um princípio da constituição e não retórica de governo ou populismo. E é justamente isso que quero reafirmar e que motivou esta escrita, o bolsa-família que é a mais emblemática política pública dos últimos 8 anos de redução das desigualdades, simplesmente realiza o que está na nossa constituição de 88, portanto, gostemos ou não, é algo a que nos obrigamos ao optarmos por uma república e uma democracia melhores. Ou seja, o bolsa-família significa que a constituição foi levada a sério. Já o preconceito, isto que, ao contrário, não é compromisso constitucional, revela a nossa dificuldade em viver em uma comunidade que não mais tem duas entradas: a da frente e a dos fundos.
É preciso lembrar que muitos de nós, como eu, por exemplo, é a segunda geração de imigrantes que saíram das suas terras por força ou dos governos colonialistas que dominaram os seus territórios ou por força de governos autoritários, cujo traço comum era a repugnância às diferenças sociais, econômicas, culturais, étnicas, ideológicas, entre outras. A mesma repugnância que, mutantis mutandis, sentem aqueles que vêem seus “próximos” mais próximos, na medida em que têm acesso a alguns dos confortos que lhes eram exclusivos. Já ouvi dizer que o bolsa-família é a melhor coisa do mundo, afinal o vagabundo não precisa trabalhar. Propus, então, a troca, do seu trabalho pelo bolsa-família, como se esta fosse uma opção. Ora, para além da nossa escolha por este ou aquele candidato é imperioso 1. que levemos a constituição a sério; 2. que lutemos contra qualquer forma de preconceito e que, 3. como Paulo, apostemos na política como um certo messianismo que faz das nossas práticas cotidianas a diferença para a comunidade que virá.

2 comentários:

Cordeiro disse...

Professora Eneida, realmente excelente o texto, triste saber que este mesmo pensamento está enraizado também em muitos de nossa faculdade. Li hoje um texto interessante sobre a psicologia de massa que envolve esta campanha difamatória contra a Dilma, que é a origem desse surto preconceituoso que estamos vendo ao nosso redor, http://pragmatismopolitico.blogspot.com/2010/10/luis-nassif-psicologia-de-massa-do.html . Abraços .Luiz Aurio

Desiree disse...

Olá Luiz.
Infelizmente o preconceito não se extingue com a educação formal... Mas pelo menos podemos livremente discutir os temas, de forma robusta, e espantar os argumentos vazios com dados e fatos.
Um abraço
Desiree