domingo, 18 de setembro de 2011

Direitos fundamentais e Administração Pública

É possível vislumbrar duas aproximações ao tema direitos fundamentais e Administração Pública. Afirma-se que a 1) Administração Pública deve respeitar os direitos fundamentais; e que 2) a Administração Pública deve efetivar os direitos fundamentais.
1. O primeiro enfoque está diretamente relacionado com a acepção contemporânea de Estado. Não é concebível hoje a instituição de um Estado e a organização de seus órgãos de soberania sem o respeito aos direitos fundamentais. Esses são vistos como elementos essenciais da concepção de Estado de Direito, e passam a ser critérios de legitimação do poder político.
Todos os órgãos de soberania são, assim, informados pelos direitos fundamentais. Em relação à Administração Pública, vista como veículo da expressão de valores e preferências dos cidadãos (como a vê Jocelyn Bourgon), ou como realizadora do interesse público, como é possível retirar da Constituição, o respeito aos direitos fundamentais é ainda mais necessário.
Apenas para pontuar, vejo que o interesse público, se concebido adequadamente, não se contrapõe aos direitos fundamentais. Tomado o artigo 3º da Constituição, me parece que apenas com uma visão inconstitucionalmente individualista é possível ver uma contraposição entre esses valores. Penso que seja sempre necessário estabelecer o que se compreende por interesse público e intuo que as divergências neste ponto sejam mais terminológicas que ontológicas.
Não há uma identificação total entre interesse público e interesses particulares, e tampouco há um interesse público transcendente aos interesses privados (DH, 58). A noção de interesse público extraível da Constituição implica o respeito e a consideração dos indivíduos, de seus direitos e de seus interesses, mas informado pelo princípio da igualdade e da solidariedade, para cumprir as tarefas estatais.
Esse ponto poderia ser considerado o mais pacífico da relação entre Administração Pública e direitos fundamentais. No entanto, infelizmente, ainda permanecem nas estruturas pouco burocráticas resquícios (ou mais que resíduos) de um pensamento personalista e anti-republicano. No que se refere, especificamente, ao respeito a um direito fundamental previsto no artigo 5º da Constituição (inciso 34, alínea a), a Administração Pública está em franco débito. Não se leva a série o direito de petição, ainda que se refira a informações de caráter evidentemente público e que serviriam para garantir a transparência da gestão da coisa pública.
2. O segundo enfoque que se pode dar é aquele que diz respeito ao papel da Administração Pública na efetivação dos direitos fundamentais. Em um Estado, como o brasileiro, fortemente informado por direitos prestacionais, a Administração atua como instrumento de realização da finalidade do Estado.
Sua atuação garante os direitos de liberdade e propriedade, com a existência de aparatos de segurança pública e de poder de polícia, para proteger e regular esses direitos. Os direitos políticos, para sua efetivação, também exigem uma administração das eleições, que organize o cadastro eleitoral, convoque e treine mesários, disponibilize as urnas eletrônicas, faça o registro de candidatos, registre partidos e assegure o gozo de suas garantias fundamentais.
Em uma visão mais ampla dos direitos políticos, na visão de participação do cidadão na administração da coisa pública de Clèmerson Merlin Clève, o cidadão propriamente participante também exige uma atuação da Administração Pública, com a organização de audiências públicas e de conselhos.
O grande desafio da Administração Pública neste ponto é em relação aos direitos sociais, à efetivação das promessas de democracia social do Estado brasileiro. A existência desses direitos com sede constitucional e revestidos de fundamentalidade impõe a prestação de serviços públicos e a implementação de políticas públicas. A busca pela realização de objetivos socialmente relevantes e determinados política e juridicamente tem como base a prestação de serviços fundamentais (Dallari Bucci, Breus, p. 185).
Ainda há outra implicação com os direitos fundamentais em relação às políticas públicas. Sua formulação deve passar por uma ampla discussão social, com a participação dos diversos setores da sociedade (Vanice, aula). Para a identificação das alternativas de solução e para a formulação da política pública exige-se a interlocução da Administração Pública com a sociedade, exige-se um processo decisório democrático e republicano.
3. Para além destes dois enfoques, penso que atualmente faz-se necessário tratar da relação entre direitos fundamentais e Administração Pública de mais uma maneira. Um outro ponto de vista que não substitui ou supera os dois anteriores, não se trata de varrer as visões anteriores, mas que se coloca ao lado dos demais. Uma relação que, na verdade, talvez nem seja exatamente esta, mas que, erroneamente, assim se compreende.
Em relação aos agentes públicos, e aqui começo a tatear, a intuir, penso que esse binômio do qual estamos tratando aqui exige um olhar ainda mais republicano do que as anteriores. Em relação aos seus agentes, a postura da Administração Pública e o desenho constitucional deve ir além de uma matriz individualista. Deve ser considerada sob outro prisma.
Antecipo as ressalvas, pois tenho consciência que sem a fundamentação necessária esse discurso pode ser aproximar de uma inadmissível defesa da funcionalização dos direitos fundamentais. Não defendo, de maneira alguma, a instrumentalização dos indivíduos para a realização dos fins do Estado. Não defendo que os agentes do Estado não tem quaisquer direitos fundamentais. Mas não me parece possível considerar simplesmente algumas garantias ou potestades dos agentes públicos como patrimônio individual.
Sei que, como aduz Ignacio de Otto Pardo, o mais problemático da defesa da Constituição em face de condutas lícitas é “la limitación de la libertad individual con exclusión de su uso para determinados fines”. Me parece que, em face das experiências brasileiras e paranaenses contemporâneas, isso, no entanto, se impõe.
Para fundamentar – ou tentar fazê-lo – essa intuição, me apego à ideia de função cunhada por Celso Antonio Bandeira de Mello e da distinção entre direitos públicos e prerrogativas estabelecida por Carlos Ayres Britto. Parto do pressuposto que os agentes públicos exercem função e para isso contam com um conjunto de prerrogativas, que não se incorporam aos indivíduos como os direitos subjetivos.
Possivelmente uma das definições mais repetidas em salas de aula, para Celso Antônio Bandeira de Mello “[e]xiste função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-los”.
Celso Antônio promove, republicanamente, a inversão entre direitos e deveres. Inicialmente – e assim se dá quando do exercício de uma função pública – há um dever, um objetivo a ser alcançado, uma tarefa, cuja definição não está ao alcance do agente, mas lhe é anterior. E para a realização deste mister ou encargo, para isso e não para qualquer outra coisa, é que alguns poderes, prerrogativas ou potestades se colocam à disposição do agente público. Desta maneira, há uma inafastável relação de finalidade.
Afirmei antes que esse terceiro ponto de vista não está exatamente relacionado ao binômio Administração Pública e direitos fundamentais. E digo isso baseada na distinção feita por Carlos Ayres Britto entre direitos subjetivos e prerrogativas logo após a entrada em vigor da Constituição de 1988.
Para Carlos Ayres, as prerrogativas se aproximam dos direitos subjetivos, pois são valiosas, pessoalmente fruíveis e passíveis de exigibilidade, mas se afastam daqueles pois não tem seu conteúdo constitucionalmente expresso, tem um âmbito mais reduzido de beneficiários e, o que interessa diretamente ao meu argumento, tem um caráter preponderantemente político-institucional.
Quando estamos diante de prerrogativas, há a ascendência da função. Ou seja, o exercício das prerrogativas justifica-se para o cumprimento de um dever, estabelecido normativamente. Repito, pois isso não é a regra entre nossos administradores: as prerrogativas não servem para o atendimento de interesses individuais ou parciais, ou para a realização de um projeto político pessoal ou partidário.
Com Carlos Ayres, as prerrogativas são direitos especialíssimos, que se destinam a reforçar a possibilidade de realização dos valores constitucionais, são mandamentos especialíssimos de reforço protetivo a valores constitucionais, que habilitam o sujeito para a preservação das instituições. Para o autor, “no cerne de cada prerrogativa constitucional está pressuposta uma atividade pública ou privada de que dependem interesses sociais transbordantes dos interesses privados dos respectivos exercentes, em grau mais acentuado que o verificado na tessitura dos direitos meramente subjetivos”.
O ordenamento jurídico permite essa construção, quando estabelece o estatuto dos congressistas a partir do artigo 53, com uma série de prerrogativas e traz a figura da quebra de decoro para os casos de abusos destas prerrogativas. Assim, há a inviolabilidade civil e penal pelas opiniões, palavras e votos dos parlamentares, mas é hipótese de perda de mandato o procedimento declarado incompatível com o decoro parlamentar.
As prerrogativas dos parlamentares se referem à exigência de ampla liberdade e independência do Parlamento e dos representantes. Respondem a uma finalidade democrática e, para Pinto Ferreira, tem caráter instrumental. Não dizem respeito aos indivíduos que ocupam as funções de parlamentares, mas à função em si. Com Carlos Ayres, o caráter das prerrogativas dos membros do Parlamento tem um caráter eminentemente político-institucional.
Parece razoável deduzir que as prerrogativas que se dirigem aos agentes dos demais órgãos de soberania tenham ontologicamente similares. As garantias do Estatuto da Magistratura, a partir da sua sede constitucional, não podem ser vistas como privilégios de seus titulares, mas como exigências institucionais para permitir o exercício adequado das funções do Poder Judiciário. Fábio Konder Comparato aponta a independência funcional da magistratura como garantia institucional do regime democrático. E é apenas desta forma que é possível compreender tais prerrogativas em um regime republicano.
Em face destas duas ordens de argumentos, em relação ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário, é possível configurar de maneira análoga as prerrogativas dos titulares do Poder Executivo e de seus auxiliares. Todos os poderes reunidos na figura do chefe do Executivo em nosso sistema hiperpresidencialista devem passar também por esse olhar. Devem ser encarados como instrumentos para a realização de tarefas estabelecidas constitucionalmente.
A possibilidade de escolher livremente seus auxiliares bem como de preencher cargos de confiança deve ser submetida a essa máxima. Se os cargos de confiança são aqueles que exigem uma articulação entre o plano político e o plano técnico e que promovem o diálogo entre estas esferas, a competência técnica não pode ser desprezada. A chamada “livre nomeação” não se divorcia do sistema constitucional e dos princípios da Administração Pública. O feixe de prerrogativas serve para o exercício de uma função, e como tal deve ser controlado.
O mesmo pode ser dito em relação à organização do Estado, à atuação política dos agentes públicos. A política não deve ser demonizada, mas tem que parar de ser confundida com o adonamento do Estado, com o aparelhamento de seus setores estratégicos – principalmente os que devem controlar o poder – com aliados. O agente político detentor de mandato eletivo tem liberdade para o seu exercício, entendida como independência de instruções. Não pode, no entanto, ignorar a Constituição, seus valores e princípios.
Essa visão que afasta a confusão entre as prerrogativas e os direitos fundamentais me parece indispensável para a realização da República. Ainda não vislumbro desenhos institucionais para sua promoção, mas tenho certeza da imprescindibilidade do controle cidadão para a mudança, para a construção de uma Administração e de um Estado verdadeiramente democráticos.
Pode parecer frágil, mas, em tempos de redes, vale a lembrança de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã: /ele precisará sempre de outros galos. /De um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito de um galo antes/ e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos”. 

Um comentário:

Luana disse...

http://www.youtube.com/watch?v=ayHi5l9U6yI